sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

A nostalgia de Portinari

O jovem Candido Portinari

Sebastião Jacobina | Garanhuns, 09/12/1994

Entendo que na arte literária - em prosa e verso - como "leitmotiv", nas ocasiões que me são dadas nesta página de Letras e Artes, a infância é tema constante na obra dos mais variados gêneros e movimentos literários, não se esgotando na iteração do assunto.

A nostalgia, apesar da existência de certa restrição à sua significação na conduta humana - considerando-a alguns como qualidade negativa do pensamento, alegando-se-lhe o conceito de possuir nuance sentimentalista. Atribuem, os que assim pensam, ser o cotidiano de medíocres escritores. Tese esta contraditada ostensivamente por muitos escritores.

Octávio Paz, poeta mexicano, prêmio Nobel de Literatura, perguntando sobre o culto ao passado, à memória, objetivada em Proust, na sua Em Busca do Tempo Perdido, se ele fez poesia naquela obra, esclareceu com precisão: Sim, pois a poesia recupera o passado, a poesia é a imaginação e a memória. Torna presente o passado.

Este meu fascínio pela recorrência dos bons autores à idade pueril, cada vez se consolida mais, quando a encontro inserida, transcendente, num escrito de natureza poética.

Antonio Calado, de grande atuação na inteligência brasileira, em trabalho crítico perfilando a vida artística do pinto Candido Portinari, traz a público, uma faceta deste imenso criador de beleza plástica nos seus painéis e murais disseminados nos ditos meios culturais civilizados deste velho mundo. Desvela para todos nós, a poesia de Portinari, ressumando de ternura, tendo como protagonista a evocação do seu viver de menino e a melancolia sentida quando ele entra no viver do mundo adulto da sociedade.

Não têm títulos os versos. Leiam o poetar de Portinari no seu sentido as mutações da vida:

Na infância lidava mais com os 

pássaros, os animais, as árvores,

as águas, as nuvens, o céu estrelado e o vento.

Mais tarde comecei


a tratar com os homens a 

diferença deixou-me tão triste,

 nunca mais me alegrei

Na infância amei a brisa.


Palavra nas esquinas esperando-a

ou a sentia de longe e a lua

de São Jorge lá de cima a acompanhava

clareando-lhe o caminho.


No firmamento vi nossos sonhos.

Créditos da foto: https://brasilescola.uol.com.br/artes/candido-portinari.htm

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Senhor Alfredo Leite Cavalcanti


Dr. José Francisco de Souza* (foto) | Garanhuns, 23 de dezembro de 1978 

Vultos das Ruas - O homem muitas vezes aparece no campo político e social, por coincidência de certas  perspectivas. Exerce mandato popular por  circunstâncias alheias à sua própria vontade. Encontra-se por atitude no meio populista, sem entretanto, merecer a simpatia do povo. Representa o que não o é, por natureza. E por mera atitude faz muitas coisas que não quer. É sempre sujeito aos movimentos circulares da roda viva. A sua presença é simplesmente um ato físico do trabalho humano. Ainda não é uma figura autônoma. Um ser só deve se  considerar independe - quando é senhor de si mesmo. Ou seja quando deve a si mesmo o seu modo de existir. Nesse estado é capaz de criar no Eterno. Em seu campo de atividades surgem muitas opções. Pela escolha inteligente de algumas delas o homem conquista o direito de se afirmar. Começa a se projetar no cenário da vida comum. Torna-se um elemento polêmico e intransigente no que tange a sua pontura política. No curso natural das coisas o seu comportamento psicológico começa a mudar. E sugere a si mesmo a possibilidade de melhor servir ao seu grupo. É uma  espécie de evocação inconsciente do passado. É uma regressão de memória que não bem compreendida conduz a falsa interpretação. E o homem transforma-se em passadista ortodoxo. Daí a versão por tudo que se renova pelos impulsos naturais da vida. Voltando para o passado que é o não-ser. Nem sempre se projeta para o futuro (o vira-ser) e foge constantemente à realidade presente. Nestas circunstâncias pode fazer a sua própria história - mas não a faz sob o domínio de sua escolha e sim sob o domínio das que se defronta diretamente, legados e transmitidas pelo passado. A força do determinismo histórico postula que: "A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos". Pertencente a historiografia, a arte de escrever a história, ou seja descrever os acontecimentos que se desenrolaram no longo do tempo. Já a filosofia da história é a maneira de analisar e interpretar os acontecimentos. O historiador ou historiográfico não deve imaginar fatos inexistentes e nem justificar predileções. O direito de informar as coisas sérias é conquista do espírito de alta indagação. A liberdade de informar corresponde ao dever de informar todos os acontecimentos sem parcialidade. Mesmo no campo da história o imperialismo pode dominar. Há imperialismo no momento em que somos obrigados e constrangidos a escolher não o que queremos -  mas o que nos dão. Deve existir oportunidade ao leitor da história, no sentido de transformar os seus conhecimentos em cerimônia festiva.

Alfredo Leite Cavalcanti

Alfredo Leite Cavalcanti não era filho da cidade das flores, dos cravos e das boninas.

Surgiu por aqui, no período de sua infância. Foi elemento de destaque da numerosa família Leite Cavalcanti. Todos se estabeleceram no altaneiro Bairro da Boa Vista. E ali viveram muitos anos e construíram considerável patrimônio econômico. As suas atividades foram muitas e várias. Foi empregado da firma Sátiro Ivo até a famigerada hecatombe. Depois serviu como auxiliar de escrita no Escritório da Fábrica "Trajano de Medeiros". 

Fundador da Banda Musical Independente, onde tocava trombone. Gostava de teatro e foi um dos componentes do Grêmio Polimático de Garanhuns. Fora  contemporâneo de José Elesbão, Arthur Maia, João José de Carvalho e o nosso dileto amigo Manoel da Cruz Gouveia. Nas horas vagas matava as saudades dedilhando com certa habilidade o instrumento de Tárrega. Foi o pioneiro dos transportes coletivos e manteve por muito tempo um  bem organizado serviço de ônibus. Gostava do velho poeta Catulo da Paixão Cearense e sabia de memória quase todos os poemas do "Marroeiro". Quando esteve no Rio de Janeiro, visitou o velho poeta e pousaram juntos para a posteridade. Vereador pela legenda da UDN cumpriu bem o seu mandato como político e levou muito a sério o partido do Brigadeiro Eduardo Gomes. Depois de seu mandato a Câmara de Vereadores agraciou-o   com o título honorífico de "Cidadão de Garanhuns".

Alfredo Leite Cavalcanti escreveu a História de Garanhuns (dois volumes). A doação de sua postura intelectual foi mais um exaustivo trabalho de  pesquisa. sem diversificar esse tipo de pesquisa através de Bibliotecas. Limitou-se a consultar os Arquivos Cartorários. Convidado pelo Professor Uzzae Canuto, ao lado da nossa querida amiga Professora Ivonita Guerra, fizemos na Faculdade de Garanhuns, a sua apresentação. A sua palestra sobre História de Garanhuns correspondeu à confiança dos dirigentes da nossa Faculdade.

Não era orador propriamente. Sabia, contudo, transmitir o seu pensamento. O Prefácio da História de Garanhuns é do professor João de Deus de Oliveira Dias. Trabalho de  alto porte intelectual em que o mestre teve a oportunidade de revelar os seus profundos conhecimentos de nossa formação geográfica, ecológica e histórica. É um trabalho de mestre. Sobretudo pelo gabarito intelectual do seu autor.

Alfredo Leite Cavalcanti faleceu aqui na terra onde viveu e amou com todas as forças de  seu espírito. Os seus  olhos se fecharam para  este mundo de lágrimas, já em idade avançada. Foi vereador, músico, trabalhou em teatro, historiador, é portanto, mais um dos vultos da nossa terra, da cidade centenária.

*Advogado, jornalista, cronista, poeta e historiador.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Manoel Neto: Um homem apaixonado por Garanhuns

Manoel Neto Teixeira
Um homem apaixonado por Garanhuns, é assim que se define Manoel Neto Teixeira (foto), nascido em Itaíba 02 de novembro de 1943, à época, distrito de Águas Belas, mas que logo aos oito anos de idade veio morar junto com os pais em Garanhuns, terra que aprendeu a amar com toda a intensidade de um eterno apaixonado, e que busca nas lembranças de um passado hoje, distante, as melhores recordações de sua vida, a infância, época pura e marcante. Filho de Seu Henrique Jacinto e de Dona Alzira Alves Teixeira, casado com Vânia Nóbrega. Teve consigo desde muito cedo a consciência de que com uma educação de alto nível conseguiria alcançar todos os seus objetivos. Estudou durante toda a juventude no Colégio Diocesano de Garanhuns, onde  fez os cursos Primário, Admissão ao Ginásio e o Clássico, concluindo-os em 1965, ano do Jubileu do Diocesano. Viveu momentos inesquecíveis e obteve uma educação que lhe serviu de base para toda a vida. Logo aos vinte anos mudou-se para Recife, cidade  onde bacharelou-se em Comunicação Social  (Jornalismo), concluindo em 1968 e Direito em 1973 pela Universidade Católica de Pernambuco; no ano de 1986 concluiu seu Mestrado em Ciência Política pela Universidade de Pernambuco.

Logo que adentrou à Faculdade de Jornalismo, Manoel Neto foi contratado para trabalhar no Diário de Pernambuco, empresa séria e  consolidada em todo Estado, que o teve em seus quadros por vinte anos, de 1967 a 1987, escrevendo sobre assuntos relacionados à educação, ciência e pesquisa. Período esse em que desenvolveu todas as qualidades de um bom jornalista, tornando-se um profissional reconhecido e respeitado por todos. Foi redator especializado da antiga Agência Nacional, Sucursal-Recife; fundador e diretor do Jornal O Judiciário, com sede no Recife; fundador e diretor da Polys Editora, Recife; produtor e apresentador de programas no Núcleo de Rádio e TV Universitária (UFPE), 1984/94.

Professor Manoel Neto, como é mais conhecido, lecionou nos cursos de Direito e Administração da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco e da Autarquia do Ensino Superior de Garanhuns - AESGA. Faz parte da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (Cadeira 44), da Academia Olindense de Letras (Cadeira 23); da Academia de Letras de Garanhuns (Cadeira 19) e Instituto Histórico e Geográfico de Olinda.

Sua carreira como escritor teve início na década de oitenta, lançando o livro "Descaminhos da Universidade",  pela Editora Universitária da Universidade Federal de Pernambuco. Com um título considerado ousado para a época, a obra é composta basicamente por dois elementos, o analítico que aborda a decadência do ensino superior e também sobre questões políticas, e o segundo momento é o objetivo, que trata do levantamento da pesquisa que ocorreu ao longo de vários anos sobre o ensino superior no Estado de Pernambuco, desde 1827 com a fundação do primeiro curso jurídico do Brasil em Olinda, até o ano de 1980. Logo em seguida foi coautor do livro "Retórica", como encerramento do seu Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco e autor da série Multivisão - volumes I,II, III, IV e V.

Em 1994 escreveu uma obra que foi muito gratificante e que lhe trouxe lembranças de sua doce juventude em nossa cidade. Foi o livro "O Diocesano de Garanhuns e Monsenhor Adelmar - De Corpo e Alma", uma obra que narra toda história do Colégio Diocesano de Garanhuns, uma espécie de retribuição pelo alicerce cultural que o colégio lhe deu ao longo de sua juventude; esse livro teve sua segunda edição publicada em 2000. No ano de 2003 foi lançado "Olinda, das Colinas a Planície", livro que foi considerado pelo Instituto Histórico de Olinda como "O Livro do Século", e além disso uma obra que foi apoiada e abraçada por todos os olindenses. Em seguida lança a obra "Pinto Ferreira Vida e Obra", uma síntese da vida desse grande filósofo brasileiro, uma pessoa que conseguiu alinhar perfeitamente sua genialidade com uma  vida simples, humilde e digna.

Em 2016 Manoel Neto lança o livro "Garanhuns - Álbum do Novo Milênio (1811-2016)". A obra versa sobre múltiplos aspectos e fatos relacionados com a história de Garanhuns, desde os tempos de sua formação inicial como Vila, a formação dos poderes, Legislativo, Executivo e religiosos; o desdobramento urbanístico com suas avenidas, ruas e bairros, suas instituições civis e educacionais até manifestações artístico-culturais. 

Manoel Neto Teixeira, um exemplo de batalhador, jornalista, educador e acima de tudo um cidadão que honra a todos.

CIDADANIA GARANHUENSE


Manoel Neto Teixeira
Texto de Manoel Neto Teixeira*

Quando Duarte Coelho Pereira, Donatário da Capitania de Pernambuco, escreveu para o Rei de Portugal, em 1548, informando sobre a criação da Câmara da Vila de Olinda e os primeiros atos aprovados pelos vereadores da época, estava registrando para a história  dois Fatos relevantes: o pioneirismo do solo pernambucano na instalação da primeira casa legislativa do Brasil colônia e, ao mesmo tempo, confirmando a sua participação na discussão, aprovação e consequentemente legitimação dos atos  e ações político-administrativos na vida das comunidades.

Faço este registro, de natureza histórica, para realçar a importância do Poder Legislativo, que tem a corresponsabilidade, ao lado do Poder Executivo, na condução do processo político-administrativo de cada uma das três unidades que formam a nossa Federação. As Câmaras de Vereadores surgiram assim desde os primórdios - Brasil Colônia, Brasil República - e se  consolidam até hoje como casas de ressonância das expectativas e aspirações de povo.

D. Alzira Alves Teixeira
Em nenhum momento, até mesmo nos períodos mais obscuros, conhecidos como regimes de exceção, autocráticos - e foram os mais longos da nossa história -, o município jamais  perdeu sua força e importância para o conjunto da sociedade. Constitui geografia sentimental, dimensão espaço/tempo onde exercitamos os sentidos da natureza humana, desde os primeiros anos de vida, nas relações familiares, sociais, culturais, políticas e profissionais de cada cidadão.

O território brasileiro, esse continente, está dividido em cerca de cinco mil e quinhentos municípios, os quais formam os vinte e sete Estados, além do Distrito Federal, sede do Governo Central. O município é uma das três unidades que formam a Federação brasileira, gozando de autonomia político-administrativa, conforme  o mandamento constitucional.

Sr. Henrique Jacinto da Silva
Para o homem, ideal seria muito ter necessidade de sair da terra natal para assegurar, não raro a própria sobrevivência, como foi o caso do nosso presidente recém-eleito Luiz Inácio Lula da Silva, impelido pelas circunstâncias socioeconômicas, ele  e sua família, tendo que deixar, anos 50, para sobreviver nas terras do sul, fenômeno político assimilado nos versos "A Triste Partida", de Patativa do Assaré, com música e interpretação do genial Gonzagão; outros migram, em condições menos traumáticas, como é  o nosso caso, graças ao apoio e às condições familiares, em busca de oportunidade para desenvolver suas potencialidade profissionais, levados, quase sempre, por fatores alheios à própria vontade.

Nessa dimensão, o migrar e emigrar são fenômenos que se projetam na vida humana, desde a pré-história, quando ainda, sem a delimitação geofísica, política e econômica do planeta terra, o homem circulava de forma nômade, sem a cultura da fixação definitiva em dado espaço, O que só veio concretizar-se milênio depois, com a conquista do território e, este por sua  vez, dividido em unidades, onde o município, no caso brasileiro, foi a primeira célula, numa histórica antecipação ao próprio surgimento do Estado nacional.

Tive, contudo, a felicidade de migrar, aos sete anos de idade, de Itaíba, sertão pernambucano, para Garanhuns, cidade polo do Agreste Meridional, tangido pela visão dos meus queridos pais, Alzira Alves Teixeira e Henrique Jacinto da Silva, e  de outros familiares, minhas queridas tias Luiza Moreira e Ercide Barros, estas, já residindo aqui, nesta maravilhosa terra, era início dos anos 50. A todas elas, minha eterna gratidão.

Aqui, depois de alguns meses de instrução informal com a professora Nair Moreira, da saudosa memória, e a quem rendo minhas homenagens, subi a ladeira a matriculei-me no Colégio Diocesano, onde conclui o curso Clássico em 1965, ano do Cinquentenário dessa querida e amada instituição. Garanhuns, à época, não tinha ensino de terceiro grau, o que levou-me a migrar novamente, desta feita, para a capital pernambucana, onde  fiz minha carreira acadêmico-profissional, inicialmente como repórter do Diario de Pernambuco, onde laborei e aprendi nessa grande escola, durante 20 anos ininterruptos, ao lado de outros garanhuenses, amigos e contemporâneos, Marcílio Viana Luna, Gladistone Vieira Belo, Zenaide Barbosa, Ronildo e Waldimir Maia Leite. Mas foi daqui que levei a bagagem que me  credenciou a palmilhar esses caminhos, bagagem colhida sobretudo no Gigante da Praça da Bandeira, com eminentes mestres, Luzinette Laporte, Isaura Medeiros, Lenice Falcão, Levino Epaminondas de França, Manoel Lustosa, Maria José Miranda, Maria José Ferreira, Erasmo Bernardino Vilela, Hilton Rodrigues, Almira e Arlinda Valença, Elzira Pernambuco, Lourdinha Moraes, entre outros, sob a liderança do mestre de sempre, Mons. Adelmar da Mota Valença, muitos dos quais, já em outra dimensão, e aos quais, minha eterna gratidão.

Senhor Presidente, senhores vereadores, senhor Prefeito: migrei para o Recife, naquele ano, de muitas dificuldades  políticas, pois estávamos no limiar do golpe de 64, para o qual, a imprensa e a universidade eram dois segmentos perigosos e ameaçadores, posto que são canais de reflexão, assimilação e transmissão de informações e conhecimentos. Parti mas  não deixei Garanhuns, levei-a comigo, no meu coração, no consciente e inconsciente, ela, palco insubstituível e inesquecível da minha infância e adolescência, onde sonhei os sonhos próprios dessa idade, de um jovem que desde cedo incutira a ideia do  dever ser, assumindo posição cívica-profissionais capazes de  contribuir para a sociedade, carregando em mim, simultaneamente, a consciência individual e a coletiva, condição inerente à natureza humana, conforme aprendemos com os eminentes mestres Cláudio Souto, Pinto Ferreira e Durkheim. Garanhuns continua sendo, para mim, município, pátrio e universo, pois sempre me considerei e autoproclamei, orgulhosa e sentimentalmente, cidadão desta terra.

Pedro Leite Cavalcanti
Se já era fato, agora, com esta formalização, passo a ser Cidadão Honorário, portanto de direito, o que me desvanece. Menos por méritos próprios e muito mais pela delicadeza e  bondade dos senhores vereadores, entre os quais destaco o autor do Projeto de Resolução 896/2000, o ex-vereador Pedro Leite Cavalcanti, homem simples e atualizado, de braços com a cultura desta terra, ex-aluno que honra o Colégio Diocesano de Garanhuns, pela sua conduta ilibada e exemplar de cidadão e homem público.

Foi com esse sentimento que, trinta anos depois de haver migrado, voltei com um projeto elaborado e, após despachar com o Mons. Adelmar e o Professor Albérico Fernandes, atual diretor, numa manhã de abril de 1994, juntamente com minha querida companheira e amiga, Wânia Nóbrega, tive a felicidade de produzir O Diocesano de Garanhuns e Mons. Adelmar, de Corpo e Alma, agora na segunda edição. Durante três meses, hospedado no Hotel Petrópolis, despachei diariamente com o Mons. Adelmar, colhendo dele orientação, documentos e tendo acesso ao seu arquivo particular, para elaboração do livro. Foram  momentos de muita felicidade, inesquecíveis, para mim, sem o que, não teríamos elaborado a pesquisa. Momentos compartilhados com a eminente mestra Maria José Ferreira, assessora de todas as horas do Mons. Adelmar, principalmente nos  últimos anos de sua profícua existência entre nós, bem como de  outros professores e funcionários do Colégio. Sabia do meu  compromisso e responsabilidade, pois estava a pesquisar e escrever não apenas a história da mais importante instituição de ensino do interior de Pernambuco, mas ao mesmo tempo, parte significativa da própria história deste município, pois esta não estará completa se não reservar páginas de ouro à vida e obra do Mons. Adelmar, à frente do Colégio Diocesano, na maior parte do século XX.

Monsenhores José de Anchieta Callou e Adelmar da Mota Valença
Agradeço, por fim, a todos, poderes constituídos, aos amigos e contemporâneos, com os quais tenho a felicidade de conviver e aprender, todas as vezes que volto a esta terra, Humberto Alves de Moraes, Ulisses Pinto, Almir Alves, Roberto Almeida, Paulo Gervais, João Marques, Osman Holanda, Nivaldo Tenório, Luzinette Laporte, Rossini Mouta, Ivo Tinô do Amaral, Marcio Quirino, para citar apenas os mais próximos. Com esta formalização sinto-me desafiado a redobrar esforços para retribuir um pouco do muito que de Garanhuns recebi. Faço minhas, aqui, as palavras do Mestre de sempre e de  todos nós, o inexcedível Mons. Adelmar, quando recebia, ao lado também do Mons. Anchieta Callou, os dois primeiros títulos de Cidadãos Honoríficos de Garanhuns, em sessão solene e memorável desta mesma Câmara de Vereadores, sempre atenta e vigilante como a casa do povo,  numa noite fria e invernosa de 19 de  de março de 1958: "Garanhuns nada me deve; ao contrário, devo tudo a Garanhuns".

Muito obrigado.

Discurso de agradecimento ao título de "Cidadão Honorário de Garanhuns", concedido pela Câmara de Vereadores, sessão de 29 de novembro de 2002.

Fotos: (1) - Manoel Neto Teixeira; (2) - D. Alzira Alves Teixeira, mãe de Manoel Neto Teixeira; (3) - Sr. Henrique Jacinto da Silva, pai de Manoel Neto Teixeira; (4) - Ex-vereador Pedro Leite Cavalcanti, autor do Projeto que concedeu a o Título de Cidadão; (5) - Monsenhores José de Anchieta Callou e Adelmar da Mota Valença recebem Título de Cidadão  de Garanhuns em 19 de março de 1958; (6) - Resolução e o Projeto de Resolução.

Anchieta Gueiros - História de Garanhuns e do Agreste

Anchieta Gueiros - História de Garanhuns e do Agreste

sábado, 11 de janeiro de 2025

A Festa da Farinhada

Josafá Paz Bezerra

Josafá Paz Bezerra

Primeiras chuvas do inverno, no município de Garanhuns, PE, mais especificamente no Sítio Mimoso, se plantavam muitos roçados de mandioca. Era também o momento adequado e preciso para puxar facilmente esse tubérculo da terra arenosa e fértil, onde tinham sido plantadas as manivas, ou caule, de mandiocas maduras.

Lembro-me bem, ainda criança, ao cantar dos galos, e do cacarejar das galinhas, acordávamos pela madrugada, dia  clareando como o sol nascendo fraco do nascente, e uma garoa insistente e fria a cair. Tomávamos nosso café (cuscuz com ovos e café com leite) e esperávamos o meu  padrinho Apolônio terminar de tirar o leite das vacas, poucas, porém bem leiteiras, que enchiam dois tonéis de leite que eram trazidos pelo carro do leite, para entregar na Cilpe, empresa de processamento de leite da região.

Ele chegava, tomava o café, juntava os quatro bois de carro (mimoso, corisco, azulão e vermelho) e os colocava em cangas, e os  conectava aos dois carros de boi existentes, já fechados com tábuas para ir buscar as mandiocas no roçado, as que no dia anterior tinham sido objeto do arranquio e estavam no campo à espera do trato final.

Este último trato era separá-las do caule dos pés de mandioca.

Os adultos, com facas grandes, iam separando as mandiocas, e nós, crianças e adolescentes, jogando-as dentro dos carros de boi até enchê-los. Após essa tarefa, íamos acompanhando os carros de boi, cujas rodas gemiam a se escutar à longa distância: nheemmm!... Até a casa de farinha. O meu padrinho Apolônio, e seu filho Francisco, eram os carreiros a conduzir os bois, tendo como instrumento de persuasão dos animais uma vara com um prego na ponta (ferrão) e um chicote, para, em caso de desvio de caminho, eles os açoitarem ou os furarem, para pegar o prumo correto da casa de farinha.

Chegando à casa de farinha, descarregávamos toda a mandioca e voltávamos para fazer outra colheita.

Quando chegávamos ao local da coleta, os adultos já estavam replantando a mandioca, que consistia em pegar o caule, cortar em pedaços, e, enquanto uma ia fazendo covas à frente com a enxada, outro ia logo em seguida colocando dois pedaços (manivas) e enterrando com ajuda do pé. Com poucos dias, a terra arenosa, molhada e fértil fazia brotar novas plantas para a colheita do ano vindouro.

Novo enchimento de mandioca nos carros de boi, e assim se repetia umas 4 vezes. 

Posta toda mandioca na casa de farinha, vinha o trabalho da industrialização, cujos instrumentos arcaicos, todos em madeiras, já tinham sido reparados nos dias anteriores pelos  farinheiros (prensa, forno, máquina de raspar a  mandioca).

Na chegada à casa de farinha, já ouvíamos as mulheres cantando cantigas da época, que assim se desenrolavam:

"Oh, moça namoradeira!

Namoradeira,

nessa ribeira todo mundo ama ela,

olhei pra ela

fiz ar de riso

é proibido eu não me casar com ela."

"Ela tem cheiro da flor da floresta,

É uma festa o olhar dessa mulher"...

Uma festa, um só ânimo, um propósito: fazer farinha.

Depois de "cevada"  a mandioca, em caititu de lâminas afiadas, as raízes viravam pasta. Essa pasta era levada para uma prensa, também feita em madeira, que era apertada por dois homens, rodando uma barra de madeira na  extremidade superior, e o pivô que era feito um  parafuso ia direcionando para baixo, uma base de madeira grossa e forte que imprensava a pasta da mandioca com muita força, fazendo escorrer toda a sua água, que corria numa canaleta, também de madeira, para se depositar em  umas gamelas de madeira, e ali ficava em processo de decantação, da qual se retirava outro subproduto desse processo de fabricação da farinha, que era a goma de tapioca, ou como chamávamos, a massa puba.

Agora, era levada ao forno redondo. O forno era de tijolos, e embaixo da estrutura, lenha em chamas elevavam a temperatura do forno e do ambiente. Terminado todo o processo, os trabalhadores recebiam sua paga em sacas de farinha, e o restante meu padrinho carregava de volta a sua casa, nos carros de boi, para  vender, ou trocar por outros produtos, na feira de Garanhuns.

Voltando para casa, já noitinha, a lua e  as estrelas já a nos espiar, era momento divertido para nós, crianças e adolescentes, que vínhamos sentados nos sacos de farinha, ouvindo aquelas canções antigas e harmoniosas, cantadas pelas mulheres, ao coro do ranger das rodas dos carros de boi: nhemm!... E à frente, incansáveis, estavam os bondosos bois, mimoso, corisco, azulão e vermelho.

E assim chegava, cansado, porém muito satisfeito com o dia da Festa da Farinhada. (11 de março de 2022 - Texto transcrito da Revista Cultural O Século - Maio de 2022).

sábado, 28 de dezembro de 2024

Preceitos de Padre Cícero para o meio ambiente


Manoel Neto Teixeira* | Garanhuns

Padre Cícero Romão Batista, considerado "O Santo do Povo Nordestino", deixou não apenas um legado muito forte para a crendice popular, um testamento que chamou a atenção, à época, até da cúpula de Igreja Católica no Vaticano, mas  concebeu também, numa visão antecipadora, para o ecossistema, o que chamou de "preceitos de Padre Cícero para o meio ambiente". De muito alcance científico e atualidade, foram recomendados pelo cientista e ecólogo pernambucano Vasconcelos Sobrinho.

Cassado pelo Vaticano, em pleno desabrochar de sua atuação como missionário da Igreja Católica, não bastante, Padre  Cícero continuou até a sua morte usando batina e rezando missas, abençoando beatas e fiéis que se deslocam dos estados do Nordeste em romarias para Juazeiro do Norte, no Ceará, todos os anos.

SEU CARISMA

Morto em 1934, para a crendice popular ele continua vivo, tamanha a força do seu carisma.

Mesmo cassado pelo Vaticano, sob acusações de práticas políticas pouco recomendáveis e de proteger criminosos e bandoleiros, inclusive Lampião, que tinha por ele forte respeito, o padre continuou atraindo fiéis até o dia de sua morte. Atendia assim as expectativa de milhares de fiéis, de todas as regiões, principalmente do Nordeste, os quais jamais levaram em conta a decisão do Vaticano.

Se santo ou não, o fato é que Cícero Romão Batista, recém ordenado, muito jovem, pediu e foi atendido pelo bispo da região, para iniciar seu apostolado na então pequena vila de Juazeiro, no município do Crato. Não tardou para, com visão empreendedora, transformar a pequena vila em próspera cidade, com edificações e demais instrumentos de progresso e desenvolvimento urbano, tidos como modernos, para a época. A ponto de formar forte e irresistível movimento político que culminou com a emancipação de Juazeiro, transformando-o em município.

PADIM CÍCERO

Dai foi um passo para provocar invejas e disputas políticas, naquela região do Ceará. Tanto que, os políticos do Crato fizeram duas investidas para invadir Juazeiro mas foram derrotados pelos jagunços e seguidores do "Padim Cícero".

Não apenas a corrente de fiéis e admiradores crescia a cada dia, dentro e fora do Ceará, ao mesmo tempo Padim Cícero cuidava de expandir seu imenso patrimônio imobiliário, com dezenas de fazendas, sítios, casas e outras propriedades. Durante o seu testemunho chamou a atenção de instituições diversas, enquanto cresciam os olhos de muita gente, inclusive da cúpula do Vaticano que chegou a pedir um quinhãozinho do grande patrimônio acumulado pelo santo padre do Juazeiro. E ele não se fez de rogado, tendo oferecido parte dos bens à própria Igreja, certamente pensando que, com o gesto, teria sua cassação revogada. O que não aconteceu, segundo conta o escritor Lira Neto, no livro "Padre Cícero".

Seus perseguidores políticos viam crescer cada vez mais a força do mito, em torno do qual aumentava a legião de fiéis e fanáticos com a propagação de milagres para eles concebidos através das preces e das mãos do santo padre, curando enfermos e doentes que acorriam para Juazeiro levados pela crendice popular. Em torno do qual formou-se em quase exército de jagunços e fanáticos que pegavam inclusive em armas para defesa da figura e do entorno do mito. Chegaram até derrubar o governo do Estado do Ceará, gerando um dos mais expressivos capítulos da história do Brasil, na primeira metade do século vinte.

Mas o Padim Cícero preocupava-se também com o meio ambiente. Numa visão antecipadora, sabia quão importante era e continua sendo para a vida vegetal e animal a convivência sadia e sustentável do homem com os recursos naturais. Tanto que elaborou os chamados "preceitos do Padre Cícero", propagados amplamente pelo cientista e ecólogo pernambucano Vasconcelos Sobrinho, entre outros defensores da natureza.

Os Preceitos do Padre Cícero:

01 - Não derrubar o mato nem mesmo um só pé de pau;

02 - Não toque fogo no roçado nem na caatinga;

03 - Não cace mais e deixe os bichos viverem;

04 - Não crie o boi nem o bode soltos; faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer;

05 - Não plante em serra acima nem faça roçado em ladeira muito em pé; deixe o mato protegendo a terra para que a água não arraste e não perca a sua riqueza;

06 - Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva;

07 - Represe os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta;

08 - Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só;

09 - Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar a conviver sempre com a seca; 

10 - Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer; 

11 - Mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o sertão todo vai virar um deserto só. (Manoel Neto Teixeira é jornalista e professor, é membro da Academia Olindense de Letras).

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Instrumento do nosso tempo

Anchieta Gueiros - História de Garanhuns e do Agreste
Créditos da foto: Anchieta Gueiros

Dr. José Francisco de Souza*

A palavra pode ser usada como instrumento do tempo é convencionalmente definido pelo verbo em três dimensões. Com o verbo declaramos a ação, estado e qualidade. Em geral todos somos capazes de praticar atos. Estes antes de se manifestar permanecem presentes no mundo das cogitações. Neste processo é que a busca se aprimora. Por falta de entendimento cada pessoa foge da  vida ao seu modo. O modo de enfrentar a realidade gera o desejo de segurança. Em toda parte a segurança é uma ilusão. A vida é para ser vivida com intensidade. Nas suas manifestações não há esconderijo: "nada se faz oculto que não venha à luz." Isto é bíblico.

Os dias se transformam em mês e estes em anos. A sucessão natural dos anos identifica os séculos. Este é o calendário, dos que apenas se revezam nesta vida. Dos que guardam a indiferença, dos que nunca se encontram. Dos que julgam sempre errado. Estas são as mais tristes das  solidões: viver perdido no meio da multidão.

A escrita que parece fixar a língua, é justamente o que se altera. Não lhe muda as palavras. É um problema de definições, de estilo ou mesmo de propriedade. O pensador, por exemplo, substitui a expressão pela exatidão. Quando se fala, transmite-se os sentimentos e quando se escreve ideias. As afeições sociais só se desenvolvem em nós com as nossas luzes. Parece que a presença do sofredor é contagiante. Neste momento sofremos duplamente. Quem nada imagina não sente mais do que a si mesmo. Vive só no meio do  gênero humano. O mais comprometedor é a falta do  reconhecimento. Isto representa um deserto de valores humano. Está é outra espécie de solidão que mata.

Contra o mal da incapacidade que é a mais cruel das  indiferenças. Assim vivemos ajoelhados não em penitência pelo o que passou -  mas diante de toda a dor humana. Se ofensas  existem nestas palavras, o alvo dessa ofensa é a ignorância. A pessoa humana nos merece profundo respeito. Não há qualificativos para a sucessão dos anos. Há um  estado de espírito pleno de fé como resultado da vida em sua plenitude.

Cada dia é ocasião e aprender e cada criatura que  se aproxima de nós é feliz oportunidade do progresso íntimo para a imortalidade. Em cada homem a vida se renova.

Por isso mesmo, possuímos conceitos, os mais diversos, ao redor de assuntos determinados que as palavras definem por si na simples enunciação mecânica que lhes é própria.

As palavras podem ser  usadas como instrumento do tempo. E o tempo é também o grande caminho da alma."

Para se palmilhar com dignidade os caminhos do tempo que nos conduz  para o silêncio da Eternidade: Jesus é o Mestre.

*Advogado, jornalista e historiador / Garanhuns, 29 de dezembro de 1979.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Evolução política-cultural de Garanhuns


Michel Zaidan Filho*

Para os propósitos dessa apresentação, vamos sintetizar a evolução político-cultural de Garanhuns em cinco períodos, que correspondem grosso modo à própria evolução política do país e particularmente das relações entre a União e os sentes subnacionais e conjunturas da história nacional. Primeiro período, das origens até a hecatombe de 1917. Segundo período, da hecatombe de 1917 até 1937, com o golpe do Estado Novo, e a chegada de Agamenon Magalhães ao poder. Terceiro período, do Golpe do Estado Novo até a redemocratização. Quarto, da redemocratização até o Golpe de 1964. E finalmente, o quinto, que  se estende até hoje, passando naturalmente pelo fim do regime militar e pela nova república.

SIMÔA GOMES DONTÁRIA DESSAS TERRAS

O que chamamos aqui de primeiro período é aquele que remonta às origens do povoado de Santo Antônio, ou a Vila de Cimbres, que deu início ao município de Garanhuns. Ou seja, o imenso latifúndio agropastoril que formava então os domínios territoriais de Simôa Gomes, a donatária dessas terras. Inicialmente, Garanhuns fazia parte de imensidão territorial de uma casa de Fidalgos, os Garcia da Torre, que se estabeleceram em Penedo, e que, por doação da coroa portuguesa, passaram à condição de donatários feudais, estabelecendo o domínio desde as terras da Bahia até a Paraíba. Nessa imensidão territorial, é que se recortou o território que viria dar origem a GARANHUNS, a partir do latifúndio de Simôa Gomes. Como região geográfica e climática de transição, essas terras correspondem à economia pastoril e algodoeira do Nordeste. Assim, o que caracteriza no começo a atividade econômica do lugar é uma atividade de pecuária extensiva e culturas de víveres voltadas para o abastecimento das fazendas e vilarejos. O que se pode assinalar de culturalmente  importante neste período são as tradições culturais de seus primeiros habitantes e donos da terra, os índios cariris, cujo principal traço psicossocial era uma permanente tristeza ou melancolia, que se expressava nas atitudes, nas músicas e danças e nos seus  rituais. Essa região foi objeto de muitas caçadas por bandeirantes e aventureiros aos índios cariris. Sobressaindo-se a figura de Domingos Jorge Velho, como grande  perseguidor e caçador dos indígenas locais, depois da campanha de Palmares. Da parte dos colonizadores, há que ressaltar a influência do catolicismo patriarca e familiar, que deixou suas marcas no assistencialismo, e a filantropia de Simôa Gomes em relação aos locais. A origem mesma do município deve-se a uma ação caridosa dessa donatária rural, depois que essas terras foram expropriadas pelo saque e a escravidão  das nações indígenas. É de interesse notar que Garanhuns também foi reduto de quilombolas, negros escravos que fugiram de fazendas e engenhos e construíram redutos nas terras de Garanhuns, como o do Castainho, ainda hoje existente. Neste ponto, é possível reconhecer uma rica herança multicultural, formada pela contribuição dos índios cariris, sobretudo da índia, dos negros fugitivos e do colonizador português e seus descendentes.

O segundo período dessa evolução vai até a hecatombe de 1917, e coincide com momento de intensa urbanização do novo município. A chamada hecatombe pode ser interpretada como um grande conflito social e político entre  senhores de terra, os coronéis rurais, que então mandavam na política da região e os novos senhores do comércio, dos serviços e atividades urbanas. Embora muitos desses coronéis fossem também comerciantes estabelecidos no núcleo urbano. A luta de famílias, tão comum no interior do Brasil, não deve obscurecer o significado mais  profundo desse acontecimento. Tratou-se de uma grande ruptura no padrão dominante agrário e rural da política local, rumo à hegemonia dos coronéis urbanos, assentados na cidade, grandes exportadores, beneficiadores de produtos agrários ou  comerciantes. Com a vitória desses últimos, a cidade ganhou um novo impulso urbanístico que coincide com a chegada de muitos estrangeiros, holandeses, sírio-libaneses, italianos, franceses etc., com a chegada da estrada de ferro e naturalmente com o estupendo crescimento da cafeicultura na região, em função do clima temperado, alcançando médias de 21 graus centígrados. O auge desse período se dá em 1936, com uma multiplicidade de jornais, grupos dramáticos, correntes políticas, teatros, orquestras, e um grande influência modernizadora sobre as atitudes, os comportamentos sociais, a fala, a roupa, o lazer, a ostentação de bens de consumo duráveis etc. A figura ímpar desse momento de exuberância social, econômica e cultural foi o engenheiro e animador cultural Ruber van der Linden. Homem dotado de muitas qualidade intelectuais e de curiosidade foi autor de inúmeras iniciativas importantes, como o parque ecológico, o grêmio cultural, os almanaques de Garanhuns, os primeiros esboços históricos da cidade e muito mais. Nunca mais a cidade experimentou um tal desenvolvimento cultural, a par do auge da cafeicultura e da influência modernizadora  da infraestrutura urbana que ela trouxe.

MÁRIO LIRA E CELSO GALVÃO

Esse período se encerra com o golpe de 1937 e a chegada do Estado Novo em Pernambuco, através da interventoria de Agamenon Magalhães. Esse acontecimento provoca uma nova ruptura na história de Garanhuns, pela  inaudita centralização política - trazida pelo interventor - e pela rede de apoio dos coronéis interioranos a Agamenon. Este é o período das intervenções municipais, prefeitos nomeados e indicados pelo interventor estadual, em função de suas alianças locais. Curiosamente, a cidade teve a sorte de contar com a ação de homens que foram empreendedores urbanos, embora a vida política e cultural tenha sido abafada pelo clima policial e arbitrário do regime. Nomes como Mário Lira, Celso Galvão e outros contribuíram muito para o desenvolvimento urbanístico da cidade, com grandes obras públicas, melhoramentos urbanos, novos bairros, parques, logradouros, avenidas etc.

AMARO COSTA E JOSÉ CARDOSO

Essa fase se conclui com a redemocratização, em 1946. Abre-se então uma época marcada pela disputa eleitoral e partidária e uma intensa ideologização da política, como aliás em todo o Brasil. Esse é o período do nacional desenvolvimentismo, com uma intensa mobilização de massas; de estudantes, trabalhadores rurais, operários, profissionais liberais, partidos políticos etc. Garanhuns foi sacudida pela tempestade política dessa época, com suas lideranças locais tomando posição a favor e contra os partidos nacionais e seus líderes. Aqui é preciso fazer justiça a dois nomes, o alfaiate Amaro Costa, corajoso líder comunista, que muito sofreu, e o deputado José Cardoso da Silva, do PTB. Outros renegaram suas  antigas ideias e aderiram aos golpistas de 1964 para serem aceitos como pessoas de bem na comunidade e receberam benesses dos governadores indiretos. Estes dois valorosos políticos pagaram caro pela coerência doutrinária. Aliás, algumas lideranças sociais e políticas de hoje são originárias dessa época, como o vice-prefeito da cidade, antigo líder estudantil.

Chegamos, então, ao quinto período, que corresponde à vigência da ditadura militar no Brasil e a outro momento de extrema centralização político-administrativa. É a fase do bipartidarismo oficial e ou das sublegendas partidárias. A multiplicidade de correntes ideológicas foi eliminada e substituída por uma  camisa de força de dois partidos oficiais. A vida política e cultural da cidade sofreu um enorme esvaziamento em função da censura, da centralização administrativa, do exílio e do absenteísmo de lideranças importantes. Os próprios colégios, a imprensa local, os grêmios estudantis e as igrejas deixaram de ser fontes de animação cultural da vida da cidade. A política passou a ser hegemonizada pelos novos coronéis urbanos, donos também de grande parte da riqueza produzida na região. O caráter acanhado das lideranças econômicas se reflete nas limitações culturais e políticas do município, até hoje sem representação estadual ou federal. Forasteiros e aventureiros empolgaram a vida política da cidade, fazendo carreira, primeiro de empreendedores, depois de lideranças políticas. Para isto muito contribuiu a influência cosmopolita da formação dada pelas instituições escolares e o conservadorismo das igrejas, produzindo uma emigração de jovens talentos e potenciais lideranças. Esse período foi marcado pela hegemonia de um partido único, a Arena, sendo sufocadas outras alternativas de participação. A única exceção foi o rápido governo de Souto Dourado, ligado ao MDB, advogado, vivendo fora da cidade há muito tempo, que fez uma administração voltada para a cultura, a recuperação urbanística da cidade, a moralidade administrativa e a valorização do serviço público, mas que não foi compreendido e valorizado pelos munícipes da região. Finalmente, chegamos aos dias de hoje. A consideração de um modelo político-cultural de uma cidade como Garanhuns não pode  prescindir, primeiro, do processo de esvaziamento econômico e social da cidade, mascado pela extrema concentração de renda e monopólio da atividade comercial do município. A acanhada estrutura econômica da cidade pesa naturalmente sobre a riqueza ou pobreza numa estância hidromineral de vocação turística, com um calendário de eventos musicais anual, financiado e patrocinado pelo governo estadual, no bojo da centralização fiscal e tributária, e falta de autonomia administrativa em que vivem os municípios brasileiros, faz de Garanhuns uma região de vida cultural induzida e artificial, ao contrário, aliás, de outros municípios pernambucanos. É como se a nossa cidade não tivesse uma identidade cultural definida, bem marcada, a despeito dos inúmeros valores humanos e intelectuais, das faculdades, dos colégios, das igrejas, dos clubes etc. A cidade ainda é tributária de uma programação cultural hegemonizada pela capital do Estado e outras grandes cidades de Pernambuco.

Essa fraqueza pode e deve ser combatida primeiro por iniciativas da própria sociedade civil garanhuense, seus intelectuais, seus artistas, seus professores, seus líderes comunitários e religiosos. Ou seja, não se deve esperar do governo ou de  outros essa valorização da autoestima da cidade. Mas isso só pode ser feito com o fim do cosmopolitismo estéril, vazio, empobrecedor das elites políticas e econômicas da cidade. Esse descompasso entre o papel descivilizador e descomprometido das elites e  as nossas potencialidades locais é responsável por uma cultura de alienação e de pouco respeito e reconhecimento pelos nossos valores.  A tarefa política e cultural de consertar tal desequilíbrio é de todos quanto almejem o desenvolvimento urbano e local redistributivo mais voltado para a recuperação da autoestima dos cidadãos garanhuenses. Há muito o que fazer neste terreno, é tarefa das faculdades, das igrejas, da imprensa, dos clubes, das organizações comunitárias, dos  políticos, dos  artistas, dos intelectuais, dos animadores culturais, do povo de Garanhuns, enfim.

*Palestra de Michel Zaidan Filho feita em novembro de 2001 no Centro Cultural Alfredo Leite Cavalcanti, dentro das comemorações do Centenário de Nascimento de Luís Jardim. Michel Zaidan Filho é garanhuense e Cientista Político.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Sandoval Ferreira - Vou visitar meu passado

Cultura Popular

Mote: Gido Silva

Glosa: Sandoval Ferreira

Direção artística: Everton Kelly

Direção Musical: Gido Silva

Percussão: Fabricio Vasconcelos

Mixagem: Juka Mix

Produção: Michael David

SANDOVAL FERREIRA

Sandoval Ferreira nasceu em 27 de fevereiro de 1983, em Iati, Pernambuco. Morou no Sítio Aguazinha até os seus 15 anos. Filho de  pais pobres morava numa casa sem energia onde a principal atração à noite era a luz de candeeiro a gás. O pai reunia os vizinhos e seu irmão mais velho era quem lia os folhetos de literatura de cordel. Depois Sandoval passou a ler e despertou o interesse pela poesia.

Aos 15 anos mudou-se para o Povoado Bela Vista, também em Iati, onde fez muitos amigos, viveu por lá até os 22 anos.

Aos 18 anos de idade fez uma apresentação de cordel em sua escola para o secretário de educação de Pernambuco, sendo que todos gostaram, foi o que lhe deu motivação para seguir em frente. É técnico agrícola e reside em Garanhuns.

Publicou os livros e CDS: Meu Sertão em 12 Versos - Causos Nordestinos, Porteira Velha se Abrindo Faz Meia Lua no Chão e o CD Humor Cordel e Repente.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Gonzagão e o permanente flagelo da seca em forma de canção


Manoel Neto Teixeira* | Garanhuns, julho de 2013

- Quero ser lembrado como sanfoneiro que amou e cantou muito o seu povo, o Sertão; que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, os covardes, o amor.

A recomendação, textual, é do próprio Gonzagão, o Rei do Baião, ele que tinha ciência e consciência da abrangência da sua obra, seu canto e sua sanfona, a inigualável interpretação da realidade e da cultura popular nordestina: a terra, o homem e o meio ambiente, onde o flagelo da seca foi uma constante e tema inarredável de grande parte da sua obra musical.

A seca foi decantada nos seus principais clássicos, como a Triste Partida (letra de Patativa do Assaré), Asa Branca (letra de Humberto Teixeira), Vozes da Seca (parceria com Zé Dantas), entre dezenas de outras canções.

Mesmo vivendo, desde o inicio de sua carreira, a maior parte do tempo entre o Rio e São Paulo, Gonzagão jamais mudou o seu linguajar de bom sertanejo; isso está retratado no clássico sob o título "No Ceará não Tem Disso não" (parceria com Guido de Moraes):

Nem que eu fique aqui dez anos / Eu não me acostumo não / Tudo aqui é diferente / Dos costumes do Sertão.

Certa feita, entrevistado no programa de Geraldo Freire, Rádio Jornal do Commercio no Recife, comentando o jeito de falar do nordestino, lembrou um fato hilariante ocorrido numa das ruas de São Paulo quando fora abordado por um matuto recém-chegado à capital bandeirante, mas já imitando o paulistano; Gonzagão então lhe pergunta: você é daqui mesmo? O caboclo lhe responde: não senhor, estou aqui faz seis meses". Aí Gonzagão disparou: "Você tá feito papagaio, nem imita direito o paulistano nem fala mais como nordestino; eu estou aqui há 50 anos e nunca mudei meu linguajar".

No seu livro "A Oralidade e a Imagética em Luiz Gonzaga (uma análise de conteúdo da obra musical do Rei do Baião)", o jornalista e professor José Mário Austregésilo faz um paralelo entre Gonzagão e Euclides da Cunha, este, autor do clássico ""Os Sertões"; tanto num quanto noutro, encontramos a visão estereotipada, segundo Austregésilo, pois, para Gonzagão, "todo sertanejo é vaqueiro", enquanto para Euclides da Cunha, "todo sertanejo é antes de tudo um forte".

Argumenta José Mário: "Afirmações do tipo "todo sertanejo é vaqueiro" funcionam indicando este tipo de símbolo como ícone do Nordeste. Ao lado de vaqueiros, figuras como cangaceiros, jagunços, coiteiros, rezadeiras, lavradores, delegados, soldados, rendeiras, padres, parteiras, etc, formando esse universo representativo do homem da terra, como se no Nordeste não houvessem professores, doutores, juízes e outras profissões absolutamente normais de serem exercidas".

O Nordeste brasileiro, visto como representação, é um grande espaço da saudade, e o baião, criado como símbolo da região, surge pelas mãos (sanfona) e o canto de Gonzagão, com conteúdos e narrativas recorrentes sobre a seca e o consequente êxodo rural.

O próprio Gonzagão é um desses retirantes, na medida em que, aos 18 anos de idade, incompletos, ao levar uma surra da mãe, Santana, porque havia desafiado um coronel, ameaçando-o de morte, pelo fato de haver negado a mão da sua filha para "o moleque Luiz Gonzaga se casar", deixa Exu, seu torrão natal, e se manda para o Rio de Janeiro e São Paulo, por onde inicia sua carreira artística. Ele confessa em uma de suas gravações: "Eu queria era ser artista, artista do Nordeste".

Mas o fenômeno da seca, antes de ser apenas um flagelo socioeconômico e permanente desafio até hoje não superado ou resolvido, passa a ser tema e fonte de inspiração para a grandiosa obra musical de Gonzagão, juntamente com seus parceiros, em especial Humberto Teixeira e Zé Dantas.

A seca que aí está é das mais renitentes dos últimos 50 anos, segundo os meteorologistas, com desafios e estragos irreparáveis para os nordestinos. Antes de ser um fenômeno que reaparece de tempos em tempos, é uma característica climática da região, apenas se manifesta mais forte em dados momentos, épocas, portanto uma condição natural, não devendo ser vista como novidade, o inesperado. Falta, isto sim, infraestrutura para convivência com o fenômeno, sem os traumas e prejuízos como a mortandade dos rebanhos e os impactos na flora e nas lavouras.

Esse fenômeno é destaque na obra musical desse nordestino genial, através dos seus principais sucessos; tantos e tantos, como "Légua Tirana", parceria com Zé Dantas; vejamos a letra, como o linguajar próprio e grafia da época:

Ai que estrada tão comprida / Mais que légua tão tirana / Ai se eu tivesse asa / Inda hoje eu via Ana / Quando o sol tostou as fôia / Fui inté o Juazeiro / Pra fazê uma oração / Tô vortando estrupiado / Mais alegre o coração / Padim Ciço ouviu minha prece / Varei mais de vinte serra / De alpercata e pé no chão / Mesmo assim cuma inda falta / Pra chegar no meu Sertão / Trago um terço pra Dasdore / Pra Reimundo um violão / E pra ela e ela / Trago eu e o coração.

A superstição, inerente à crendice popular na cultura nordestina, também se faz presente no repertório da seca, com a toada "Acauã", parceria com Zé Dantas:

Acauã, acauã vive cantando / Durante o tempo de verão / No silêncio das tardes agorando / Chamando a seca pro Sertão / Ai acauã raam, am, am / Teu canto é penoso e faz medo / Te cala acauã / Que é pra chuva voltar cedo / Toda noite no Sertão / Canta o João corta-pau / A coruja mãe da lua / A peitica e o bacurau / Na alegria do inverno / Canta sapo, jia e rã / Mas na tristeza da seca / Só se ouve acauã.

Outra obra prima, sob o título "Vozes da Seca", gravada em 1950, portanto mais de 60 anos já se passaram e a seca continua desafiando; letra que envolve melodia e conteúdo político, inclusive com sugestões capazes de minimizar o fenômeno, como barragens, açudagem, e serviços para o trabalhador, clássico concebido em parceria com Zé Dantas. Vejamos a letra, com a grafia e o linguajar da época:

Seu doutô, os nordestino / Tem muita gratidão / Pelo auxílio dos sulista / Nesta seca do Sertão / Mas doutô, uma esmola / A um home que é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão / É por isso que pedimo / Proteção a vomicê / Home por nós escoído / Para as rédeas do podê / Doutô dos vinte estado / Tempos oito sem chover / Veja bem, quase a metade / Do Brasil tá sem comê / Dê serviço ao nosso povo / Encha os rios de barragem / Livre assim nós da esmola / Que no fim dessa estiage / Lhe pagamo até os juro / Sem gastar nossa corage / Se o douto fizer assim / Salva o povo do Sertão / Se um dia a chuva vim / Nunca mais nós pensa em seca / Vai dá tudo neste chão / Como vê, nosso destino / Mecê tem na vossa mão.

VACA ESTRELA, BOI FUBÁ

O gado (boi e vaca) figura como elemento concreto e fonte de inspiração para os aboios, evocações sentimentais na obra de Gonzagão, onde o fenômeno da seca constitui princípio, meio e fim de grande parte das suas canções. "Vaca Estrela e Boi Fubá", letra do poeta cearense Patativa do Assaré, musicalidade e interpretação desse ilustre filho de Exu, é outra dessas pérolas que transcrevemos a seguir:

Seu douto, me dê licença / Pra minha história conta / Hoje eu tô na terra estranha / É bem triste o meu pena / Eu já fui muito feliz / Vivendo no meu lugá / Eu tinha cavalo bom / E gostava de campeã / Todo dia eu aboiava / Na porteira do currá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá>

Eu sou filho do Nordeste / Não nego meu naturá / Mas uma seca medonha / Me tangeu de lá pra cá / La eu tinha o meu gadinho / Não é bom nem imaginá / Minha vaca estrela / E o meu bonito boi fubá / Quando era de tardizinha / Eu começava a aboiá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá.

Aquela seca medonha / Fez tudo se atrapaiá / Não nasceu capim no campo / Para o gado sustenta / O sertão esturrico / Fez os açude secá / Morreu minha vaca estrela / Se acabou meu boi fubá / Perdi tudo quanto tinha / Nunca mais pude aboiá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá.

Hoje nas terra do sul / Longe do torrão natá / Qaundo eu vejo em minha frente / Uma boiada passa / As água corre dos oios / Começo logo a chorá / Lembro minha vaca estrela / E o meu lindo boi fubá / Com saudade do Nordeste / Dá vontade de aboiá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá.

Com essas e tantas outras canções, Gonzagão eternizou sua obra, voltada, em grande parte, para o tema, certamente o maior flagelo do povo nordestino; igualmente da terra, dos animais, da economia, enfim, esse fenômeno que, segundo os cientistas e ecologistas, é inerente à realidade climática da região. Daí o equívoco dos políticos que, covarde e sorrateiramente, buscam "combater" a seca com medidas paliativas, como o carro-pipa, que, no fundo, só beneficia alguns poucos, acostumados a tirar proveito dessas circunstâncias. O Nordeste precisa de ações estruturadoras, definitivas, a exemplo da revitalização, reflorestamento e consequente transposição do Rio São Francisco, obra iniciada e interrompida tantas vezes, com as construtoras deitando e rolando numa gatunagem sem medidas.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O sapato florido


Paulo Gervais | Garanhuns, 31 de dezembro de 1994

Gosto de lembrar às pessoas o que senti quando vivi pela primeira vez aquele quadro de Van Gogh que reproduz um par de sapatos. À luz daquelas cores o que impressiona e desconserta é a beleza que simples sapatos podem ter. A gente pode creditar essa beleza inusitada à capacidade do pintor de imprimi-la às coisas - insusceptíveis de beleza por si sós - ou ainda, creditá-la à sensibilidade do observador, lembrando o que disse o poeta russo Joseph Brodsky: "que a realidade , por si mesma, não vale nada; é a percepção que dá sentido a realidade"; ou então admitir que as coisas já trazem em si essa beleza, que o artista se incumbe de revelar.

Se está em mim, que a imprimo às coisas - atuando como um criador de beleza ou se está no íntimo das coisas, de onde a retiro para revelar às pessoas - atuando como um descobridor de beleza, não sei ao certo. Sei todavia, que uma realidade nova surge a partir dessa criação, ou descoberta.

Desde que vi pela primeira vez aqueles sapatos pintados por Van Gogh, qualquer sapato jamais seria o mesmo. Eu olharia sempre de um jeito diferente os velhos sapatos.

De uma forma ou de outra, é com este desafio que cotidianamente a gente se defronta - de fazer o que fez Van Gogh -, de dar às coisas da vida sempre uma nova possibilidade: a possibilidade da beleza, em razão do que também se oportuniza uma forma melhor de se relacionar com elas, de modo mais substantivo.

Recordo agora o título de um livro de Mário Quintana: "o Sapato Florido", e uns versos do poeta japonês Matsuo Bashô, escritos a propósito de um presente que lhe fizeram de "dois pares de sandálias de cordões azuis".

Sobre o livro de Quintana, comenta Tânia Carvalhal: "... o poeta colhe no dia-a-dia elementos banais, tão simples e opacos que pareciam não poder fornecer material para a poesia, e ele os integra ao domínio poético. Dá-lhes um novo sentido (...) o poeta age como se retirasse uma capa  que está a encobrir o sentido íntimo do que observa; (...) desvela a face mais superficial e a dota de uma importância antes não percebida. (...) Ao carregar as coisas simples e banais para o território da poesia, Quintana as retira do seu destino efêmero e lhes assegura uma sobrevivência maior."

Quanto aos versos do poeta japonês, eu os reproduzo textualmente, como os traduziu Olga Savary:

"pétalas de lírios

atarão meus pés:

Correias de minhas sandálias"

A partir dessa possibilidade de beleza, que a arte enseja, a gente descobre que os sapatos - não somente aqueles do livro - mas estes que se calçam, podem realmente florir, e que a metáfora que se faz entre as correias das sandálias e as pétalas de lírios - é mais que uma transferência recíproca de significados entre realidades diversas; é também e sobretudo a constatação de uma identidade profunda entre estas realidades, num plano em que esta identificação é possível - e pode ser realizada concretamente - instituindo relação mais significativa e desejável com as coisas da vida.

terça-feira, 26 de novembro de 2024

José de Anchieta Callou

José de Anchieta Callou

Dr. José Francisco de Souza*

Grandes Vultos de Garanhuns - A missão espiritual do sacerdote aqui na terra é  uma determinação de sua  livre escolha. Constitui-se de uma espécie de ponte suspensa entre dois mundos, que se integram sob as  bênçãos de Deus. É um excelente plano de trabalho para os que se dedicam à  preparação espiritual do homem. Essa função sublime, exige alta qualificação moral, e sobretudo desprendimento de espírito. A sua  conduta deve ser retilínea em todas as suas atividades religiosas. A conduta significa muito no ser humano. O bom exemplo é o maior argumento. Todos os seus  atos devem ser pontilhados de amor e justiça. Isto porque não se deve desprezar a condição precária de ser  humano. O reconhecimento de suas limitações já é uma conquista no campo moral. O apercebimento desperta a consciência de que ninguém está imune do pecado. As suas tentações podem ser sublimadas pelos deveres espirituais. A integral parcela de suas atividades é concentrada no sentido de bem conduzir as ovelhas para o redil do Cristo. Não deve cruzar os braços no meio da exaltação humana; nem participar confundindo os interesses em choque. No meio deles pode estar a verdade que não foi  alcançada por carência de ângulo. Nesses momentos o sacerdote representa um centro de sanidade espiritual. Para que a finalidade dessa atitude seja realmente benéfica à criatura, é imprescindível que o seu  comportamento como pastor seja o efeito eficaz da seara divina. Por imperativo de sua honestidade intelectual tem que sentir a presença da transitoriedade de todas as coisas, para não lhe dar demasiada importância e permanecer tranquilo. Só na ordem  espiritual da outra dimensão da vida, o homem, sacerdote especialmente, deve procurar uma  eternidade para cada coisa. Aqui na terra, nestes dias tumultuosos, basta a consciência de que estamos vivos, já é uma grande vitória porque outros poderiam estar vivendo em nosso lugar. O conceito do dever, com efeito, a sinceridade, a lisura dos propósitos e a  sublimação dos motivos - são condições indispensáveis e necessárias ao desempenho vocacional do sacerdócio. Mons. José de Anchieta Callou - foi um exemplo de trabalho e abnegação. Como vigário da  Diocese de Garanhuns prestou as mais importantes tarefas de inconteste valor moral e intelectual. Nele se conjugavam as mais vivas expressões de sentimentos e virtudes. Foi o terceiro diretor do Ginásio Diocesano; "trazia já experiência, pois fora diretor do Ginásio de Triunfo. Quatro meses após, sofre o Ginásio o rude golpe da morte de Dom Moura. Mons. Callou soube, porém, enfrentá-lo. Em 1929, conseguiu bancas examinadoras, municipalizando o Ginásio. Até então os alunos concluintes iam ao Recife, prestar exames. Em 1930, conseguiu equiparação preliminar e, em 1932, depois de ter ido ao  Rio de Janeiro, equiparação permanente, oficializando, portanto, a  vida do Ginásio. Satisfazendo as pesadas exigências do Ministério da Educação. Mons. Callou adquiriu material suficiente para o Laboratório. Fundou grêmios culturais. Conseguiu no último ano de sua direção, verificação prévia para o curso comercial. Pôde ver, ao deixar o Ginásio, seis turmas concluírem o curso ginasial aqui no próprio  colégio. Vigário Geral, pároco da Catedral, professor no Santa Sofia, no Seminário e  no próprio Ginásio, não se sabe como Mons. Callou dirigia, como dirigiu, este Educandário. Caridoso, jamais deixou ser prejudicado um  aluno por falta de pagamento (grifo é nosso). 

Não  se pode dizer que ele deixou o Ginásio, porque nunca o  deixou: tendo se afastado em dezembro de 1936, voltou, como Inspetor do Ministério da Educação, em setembro de 1939. Os seus  alunos, a ele se referem com amor, gratidão e saudade. Não é só o Ginásio que muito lhe deve: deve-lhe muito toda a Diocese de Garanhuns. Aqui chegando em  setembro de 1922, deu a Garanhuns tudo e merecia um  descanso. Não o quis, porém. Fez-se sacerdote para servir. Na verdade, Mons. Callou sempre fez tudo para todos. Completou a 23 de abril de 1966, cinquenta anos de Padre: desses, quarenta e quatro foram dedicados a Garanhuns. Foi fiscal do ensino junto ao Colégio XV de Novembro, onde conquistou simpatia e confiança de gregos e troianos. A nossa Câmara de Vereadores lhe concedeu o título de Cidadão de Garanhuns. Mons. José de Anchieta Callou - foi um sacerdote honrado. Portador de grandes conhecimentos teológicos. Orador sacro de muito recurso dialético. Pedagogo de renome. Consagrado obreiro e devoto da Santíssima Virgem Maria. Era de  uma lealdade comovente. Nas circunstâncias mais difíceis da nossa vida, sempre contamos com o seu apoio incondicional. O seu desenlace aconteceu na cidade do Recife, já em idade bem avançada. Foi um dos vultos de nossa cidade que  muito trabalhou  pela instrução e pela cultura intelectual da nossa encantadora terra.

*Advogado, historiador, cronista e jornalista / Garanhuns, 19 de novembro de 1977.

A nostalgia de Portinari

O jovem Candido Portinari Sebastião Jacobina | Garanhuns, 09/12/1994 Entendo que na arte literária - em prosa e verso - como "leitmotiv...