segunda-feira, 21 de julho de 2025

Revelações - Parte XXII

Luzinette Laporte de Carvalho

Luzinette Laporte de Carvalho*

Divago este corpo (incorpóreo) leve, livre, lúdico, lúcido. Laços. Ligações. Larva da alma é o que ele é, meu corpo. Fogo. Denso, carregado de vida que canta e ri, baila e vê e sonha. E  quer com o ser inteiro e foge. E não (re)torna.

(Seu (re)tornar é um vaivém: ludismo: jogo de  infância que não finda).

Há em mim esta alegria de infância, nobre, pura. Minha alegria que conheces, estranhas e te encanta. Este dom. Esta dádiva do amor. Espada encravada. Brasa ardendo na alma. Solilóquio, meditação, exigência. Riso fresco na noite. (Inesperado-esperado-reconhecido: brota de mim, como água de fonte). Despojamento. Perda, ganho, pobreza, riqueza, descoberta, encontro e desencontro. Vias indicativas, portas batendo ao rosto.

Alegria de ser, de viver, de saber - que saber é sofrimento, dor. (Dor não é antônimo de alegria). Vibração e acalanto. Riso leve na alma, coração em luzes.

A mesma não que me conduz à alegria. (Canto e  música - de fonte - que, mesmo escondida, se revela). Mesmo se faz treva, se a estrela some. Ainda que o luar desapareça. Ou o sol. Ou cessem os risos infantis. Os agudos / excitados risos de criança. Mesmo que não se  ouçam os sinos, os que soam em carrilhões musicais, solenes ritmos vibrantes de vida e oração. Mesmo que  não se percebam mais os olhos que destilam mel ou os cantos de infância e alumbramento, cantados em surdina, noite adentro. (Adivinham-se os cantos em um murmúrio. Cálido à noite. Fresco ao meio-dia. O mesmo canto-luz da madrugada. Ou o canto-brisa do entardecer. Os passos fortes, leves da alegria, ressacando suaves na  vida, no ser. No vasto (infinito) mundo (meu). Mar, praia, céu).

Alegria, verdade do bem maior presente. Sobrevivendo à dor, às chagas, à angústia, ao desgosto, à repugnância, a tudo. Fonte sigilada. De fogo e mel, de  gelo, fel e aço. Mais forte que a morte, Mais frágil que a  fraqueza. Permanência e transitoriedade. Todas as  nuanças da vida, todas as perspectivas, características, formas, fórmulas..

Disseste-me de doce-amarga, ardente-gelada. Meus contrastes, minhas facetas paradoxais. Mais leve e macia que pluma, acrescentaste. Mais áspera e pesada que pedra.

Sou apenas uma mulher. carregando o - enorme / terrificante-fardo de saber, (pre)sentir coisas e fatos. Acontecimentos. Coisas que não é dado dizer. Que urge silenciar. E meditá-las no coração.

Porque mulher, alçar-me até aonde chegam as  águias. Descer ao mais profundo do poço e, no deserto, adivinhar o esconso veio d'água.

É tempo de reclusão para mim. De recesso. De solidão. De queima.

Deverei permanecer assim. Lá, onde não chega teu olhar, teu desejo - de domar. Os cães guardam o deserto sem limites, como a porta do paraíso perdido.

Tamanha festa íntima, feérica solidão. Música-silêncio-repouso. Intensidade-paz-segurança-conforto. As  mãos, os braços cheios da tua ausência. Os pés (nus) pronto a correr. O corpo (lúdico) bailando. O ritmo, a música do universo, no (meu) ser, na (minha) alma. O coração rebentando de beleza. A dor. A dor. A dor. Esta alegria maior que a vida. (Ninguém pode ver e continuar vivo, se apenas adivinhar nos leva tão longe).

Mão na mão. Único absoluto gesto necessário mais: nem olhar, nem gesto, nem sorriso. Tudo nasce quando tua mão toca / toma a minha. Volta todo o sentimento de segurança e a antiga ternura (presença). Todas a paz e as visões de beleza. (O infinito desta alegria que se irradia como fogo). Uma luz. Uma chama. Um balé.

Um dia, mais remoto que todos os dias, antes de todos os meus dias, eu estava no ventre de minha mãe. Já toda programada. Era um setembro. Há muito me esperavam. (Re)tardei. Porque, desde então, me fiz futura. A além tempo-espaço. Eu era/sou/serei.

Minha mãe perdeu o equilíbrio e caiu. Eu a tomara mais pesada, mais mulher. Para defender-me, para que  eu fosse / nascesse perfeita, obrigou-se a cair de lado.

Tomou a responsabilidade de se ferir, se magoar, para preservar-me, para que o ventre onde eu me  encontrava, abrigada e segura, não fosse atingindo. Para que eu dia eu soubesse o significado do sacrifício, do  pensar no outro, do meu valor.

Durante muitos dias o braço de minha mãe  ficou machucado, dolorido, com um enorme hematoma. Quase negro. O braço que me tomaria em ternura e carinho, para amamentar-me, consolar-me, acariciar-me.

Isto é demasiado grande, profundo. No âmago do  eu, antes de todos os meus dias mais remotos, fui amada até o sacrifício: tudo, contanto que eu não fosse atingida.

Esperada, desejada, querida, amada. Tecida em dedicação e sacrifício.

Por isso, ainda que me magoem, mesmo que me  joguem como uma peça num tabuleiro de xadrez, embora me ignorem, persigam ou odeiem... serei o que sou: um ser de alegria, filha da dor, como a flor do esterco, como a onda dos ventos, como o sal da água. Tenho, possuo a  alegria com a certeza dos seus contrários, da sua  (sobre)vivência. Que perdura enquanto há ascese, perdão, misericórdia, o processo do enternecer-se.

Existência a depender de uma visão da vida; eu: um sacrifício além de tudo.

Isso enche a alma de sorrisos, sementes da alegria. Na terra (árida, ínvia, inaquosa) do caminho.

Estranhos alimentos me nutrem: fogo, vendaval e tempestades. Mas também; água, leite, mel, pão e vinho. Na insondável terra do meu ser. E o óleo que alegra a  face do homem, revitaliza a terra do coração e enriquece o seu húmus.

Aquele tombo, aquele pensamento e gesto de amor e proteção.

A solicitude de meu pai por minha mãe. Como passava, como se sentia. Toda essa realidade de amor, ternura em torno de mim.

Esperada em solicitude. Futura e presente. Tudo isso gera a inconcebível alegria-entrega. Olhos limpos de  malícia, coração puro, candura de pensamento. Alegria-cristal, alegria-transparência, alegria-luz  e alegria-fonte.

Também a outra face da alegria. A anterior, primeira, (des)conhecida, provada alegria. Ante a  descrença, a suspeita, o ceticismo, no contato com o  mundo que não acredita, cego pelo prazer.

Exige provação, a alegria. Exige valores de um reino a que o mundo não quer submeter-se.

Uma prova! O dedo nas chagas? A mão na mão? O corpo no corpo? Os atos correspondem às palavras, ao  silêncio? A dor é um susto a mais?

Contato primeiro, contínuo com o espírito do  mundo? A aprovação? A prova? O silêncio irônico da  dúvida. O riso é estranheza. O olhar direto, puro, é insolência ou provocação ("Não me olhe assim!" Assim como?).

A face velada da alegria questionada pela dúvida e a curiosidade. A fonte primeira. A pretérita futura primordial pureza. A candura-raiz: uma alegria em  chamas. Tocá-la é queimar-se, arder no seu íntimo, por saber-se uma pobre-extraordinária-frágil-rara-flor-vulnerável e invencível.

Nem as muitas águas nem o fogo nem os  vendavais podem vencê-la: alimenta-se deles. É um mistério. Uma revelação. Sua natureza despida. Sua extrema gravidade, majestade, leveza, simplicidade, discrição, silêncio.

Emudece a palavra-malícia. Susta o olhar-devassa. Detém o pensamento-ousadia. Sorriso e paz no ser inteiro. Espontaneidade, vibração deliciosa, onda envolvente. Relax para qualquer tensão. Resposta à  morbidez, à angústia. Tremor que corre até às mãos e as  enche de força. Que perpassa o corpo até os pés e os  prepara para a caminhada. Repercute do cérebro em cada músculo, nervo ou célula, e os penetra de movimento e luz.

Oração somatizada. Existência feita conscientização, humanização, amorização.

Alegria. Da partida, do retorno. As revelações todas (de) limitadas entre estas duas dimensões: partida e retorno.

E eu que não retorno, eis-me a fazer a nova (antiquíssima) aprendizagem do retorno. Eu que conheço a alegria-força brotada em árvore, raiz nas nuvens, eis-me a aprender a trêmula alegria brotada de todas as quedas. Hesitação e perseverança. Debilidade e constância.

As duas alegrias têm a mesma raiz, a mesma origem, os mesmo alimentos: são uma só e única alegria. Nela não há monotonia, estática... Só desafio. Puro desafio: curvas e obstáculos, todo tipo de acidentes encontra pelo caminho.

Só os violentos palmilham essa estrada. A vida empurra a porta do meu ser e ordena-me partir. Oferece-me um tempo virgem: a rota da alegria.

O verde sucede, sempre, ao cinza.

*Professora, jornalista e escritora | Garanhuns, PE - 2000.

Revelações - Parte XVIII

Luzinette Laporte de Carvalho

Luzinette Laporte de Carvalho*

Tomou-me a mão à orla do mar. Tão espontânea e puro o gesto... Senti-me menina. Andamos na noite... Tão leve natural foi o gesto que não nos olhamos. Não interrogamos sequer o que dizíamos. Continuamos. Tudo continuou. Não apenas um gesto, irmão. Um homem. Uma mulher. A praia. A noite. O barco lá adiante. A brisa. Conversamos. Há sempre o que dizer. Há paz na minha alma de mulher. Tu ias penetrando por mapas nunca dantes viajados. Também tu não sabias aonde estavas indo. Ou sabias? De que medo falavas? Eu não compreendia. E, ainda hoje, não compreendo. De que  medo falavas? O que estavas querendo dizer? Será que  o interpreto bem?

Gostarias que me esclarecesses, tu que és homem: de que medo falavas? Por vezes toda minha capacidade de percepção falha. Restam-me apenas evidências. E quando estas não estão aí, à minha frente, perco-me no saber estranho dos homens. Que não é o  meu próprio saber adquirido pela meditação. Obtido pela  prece e pelo estudo da misericórdia. Mas tu me  confessas tudo e eu não compreendo certos detalhes. Apenas ouço. Para que eu me possa entender. Para que tenhas com quem falar. Para que te saibas compreendido. Não vou estancar a confidência. Sei quão doloroso seria. Espero. Aquieto-me inquieta de não  poder atingir tudo. Há um monólogo prolongado em mim. Cheio de interrogações que torturam mais que as chagas. Eu gostaria de saber tudo. Pretensão-crime. Quem pode saber tudo? Passado - presente - futuro eu já conseguira condensar perfeitamente. Porque aprendera que só esta agora é. Porque aprendera muito vagamente, porém muito intensamente, o nome do absoluto. Desde que o aprendera, ficara senhora do tempo e, portanto, de certa maneira, do espaço. Espero que um dia eu te  explique isto. Porém, depois, depois. Depois do que? E depois é futuro. Ele, o que condensa vidas e a história no aqui e agora. Não adianta querer fugir desta única verdadeira realidade.

A realidade pode ser falsa? A mão na mão, gesto de amor findo? E por que a lembrança? Qual a mais persistente realidade? A de agora. E agora tomas ternamente na tua, a minha mão. E caminhamos pela praia. Agora tudo é ternura. Só ternura. Agora que os  homens se destroem. Ou fazem (a repugnante) corrida do ouro. Porque não veem e não se preocupam senão com aquilo que se pode comprar com o ouro. Toda a tortura do homem: desejar sem possuir.

Há outras moedas. Tão antigas quanto os séculos. valiosas mais, hoje, que nunca. Porém, é necessário ser  bom numismático para avaliá-las. Elas correm em  restritas mãos. De um grupo humano pobre. Estranhamente. Como podem ser pobres se suas moedas são tão valiosas que não admitem câmbio? A  mão na mão. A ternura. Tu cambiarias ternura? Como? O silêncio admirativo ou rancoroso dos que não são assim tão ricos em valores reais. O impulso do homem buscando a mulher na mulher. A violenta atração quebrando todas as convenções. O sentimento de querer. E a frustração de não ter. Não há moedas nas  casas-de-moeda que possa correr nessa transação. Faltam as palavras. Sobram os sentimentos e os gestos.

Agora. Aqui. Nem palavras. Nem gestos. Só o silêncio, profundeza dos sentimentos.

Medito. O sentido que se dá ao ouro. Por si mesmo, minério. Amoral. Como a pedra. A terra. A água. O fogo. Porém, cuja alma pode extinguir o nem maior. A  corrida do ouro. Da riqueza. Só se pode servir a um  senhor. Só a um se podem atribuir valores de certo quilate. Morrem os outros todos. Por causa de um. Caem todos os outros por um só. Exclusividade. Traduza-se: muita luta, muita dor, muita chaga. Ser capaz de ser uma . Capaz de se doar uma só vez. Capaz de migrar pelos vales / montanhas / mares / desertos de si-mesma. Sem trair. Cair por fraqueza, por surpresa. Ser traída por si mesma. Não pelos outros. Quem poderá tomar nas  mãos a gema, preciosidade única? Do ponto em que te colocares, vais ter - ou não - a perspectiva correta. Porém, jamais terás o direito à indiferença. Terás de  querer saber. Terás que deixar que a luz dardeje nos teus olhos. Como jatos de fogo.

Vagamente / intensamente saberás qual a força-luz desta afirmação primeira e última. O que te lançará não nos braços do homem, mas no lenho. Percorrerás caminhos sem mapa e sem traçado. Não haverá roteiros, mas sinais. Sempre haverá sinais. Constantemente saberás e sorrirás no silêncio de paz do teu ser. Como todos os que andam no deserto. Ou no mar. Ou no ar . Sem bússola. Mas com um cavalo e cães que farejam a fonte. Com um albatroz que indica terra. Com uma águia que acena cumes inimaginados. Os sinais aumentam. São discretos, porém.

Eu não sei (re)tornar. Foi-me dito: "basta"! E eu sei ao que se referia o basta! referia-se à dor que se nega.

Foi-me dito ainda. "continua"! Tenho que ir sempre em frente. Não haverá obstáculo que não seja contornável. Sou livre. Mas escolhi não (re)tornar. Escolha minha. Decisão minha. Estou (sempre) a caminho. Pus minha mão na dEle. Posso retirá-la se quiser. Por vezes. Ele retira a sua e me ordena seguir. Há  os sinais pelo caminho. Todas as necessárias indicações. Todos os (invisíveis) rastros. Na areia. Nas ondas. Nas pedras. Nas nuvens. Todos os indícios necessários. Basta observar. Isto eu te digo. E mais.

Vou andando, vou andando. Abrem-se fontes no deserto. Trilhos nas ondas. Rastros nas pedras. nas nuvens, clareiras. São os sinais. Perco de vista alguém, aqui e ali. Porque já chegou antes de mim. Foi mais  depressa. Ando em meu próprio ritmo. Antiga sou. Mais antiga que eles. Porém, fiz a descoberta bem depois. Caminho. Por enquanto, larguei a mão. Ando sobre relva. Ele me observa com amor. Seu preço (incalculável) estipulado é este. Não pede nada mais. Só amor. Ama. É uma ordem. Ama. É uma súplica. Ama é um conselho. Ama. É uma afirmativa. Basta este preço-sangue. Este preço-vida. este preço-tudo. Basta! Sim. Basta! E sobra. Para o agora. O aqui. Continua! Os passos se encaminham para a meta, ao sabor dos sinais. Sorrio intimamente e mim-mesma, convencida de que tudo é  certeza. A perda é ganho. Sorrio e avanço.

*Professora, jornalista e escritora | Garanhuns, PE - 2000.

Revelações - Parte I

Luzinette Laporte de Carvalho

Luzinette Laporte de Carvalho*

Tento organizar minhas ideias, tornar-me clara  e simples. Mas não é fácil, porque me sinto confusa, preocupada em dizer-te o que sinto.

Medito: eu te introduzi na minha casa como a Esposa do Cântico dos Cânticos. Tu, como o Esposo, te  introduziste.

Para outros, esta linguagem seria insólita. Porque não estão sabendo que ao te introduzires na minha casa, tu te fizeste o dono, o que recebe. Reduziste à  situação de hóspede.

Como hóspede, quis oferecer-te algo. Não material e nem espiritual. Algo que fosse ao mesmo tempo matéria e espírito. O que de mais precioso eu tivesse: o pão e vinho. E a foto da minha primeira jamais  tocada/revelada juventude, onde se podem ver o pensamento, a reflexão e as lágrimas.

Tu me havias ofendido,  e por isso eu teria que entrar em casa de alma despida. Totalmente despida. E acolher-me em ti.

Só assim eu poderia saber se aquilo que eu carregava em mim, estava em ti, também: meu desnudamento, meu despojamento, o desarmar de minha alma.

Teria que saber se estavas pronto para me receberes. E isto eu só o saberia se te visse pronto a tomares nas tuas mãos, na tua alma, no teu amor, o meu jovem ser e me compreender, me descobrir.

Teria que dizer tudo. Tudo que estava em mim: as coisas que era e as que não eram mais. E porque te julguei apto, dei-te a conhecer todas elas. Deixei que  tocasses as chagas com teus dedos.

O toque foi demasiado forte. Ficaste atônito. Então aguardei. Não pus penso nas chagas. Para que pudesses conhecê-las na sua crueza. E, sozinho, dar-lhes o bálsamo.

"É muito forte", disseste. "São verdadeiras". Aguardei ainda. "Eu serei o bálsamo", acrescentaste. Enfim, havias compreendido. Porque, afinal, tu mesmo me havias chagado.

Tuas mãos, com infinita firmeza, ternura, me conduziram para o rito do amor. Foi nesse momento que  me senti na minha casa. Ali, nada havia que não fosse m(eu). Senti-me livre. Livre presa. Pude então acolher-te, ao invés de me acolheres como até então.

Tudo, naquele momento, se passou diante dos meus olhos cerrados. Até que teu chamado me chegou a mim: pela tua quietude, pelo teu silêncio.

Obrigaste-me, por eles, a abrir os olhos. Então eu vi o que não sei dizer que vi. Pela segunda vez eu vi: teu rosto de homem teu olhar de homem, tua face de desejo e de posse. Vi e permaneci presa ao que vi, sem condições de me libertar.

E porque senti quanto estavas ferido pelas chagas que abriras, esperei que tudo - formas, cores, sons, movimentos - se movesse em tua direção. Meus dedos se fizeram mais suaves e meu silêncio mais denso. Perdia-me, como sempre, na rosa-dos-ventos, e todos os horizontes implodiram em mim.

A ternura difusa condensou-se no meu olhar e nos meus lábios. Tomei-te nos braços como um filho: "Vem!" E ao tomar-te nos braços, estava eu nos teus braços, como nos braços de um pai.

Fiz-me criança, brinquei contigo.

Soube que não me seria, jamais, possível renegar-te.

Eu te sofro, eu te assumo, embora doam-me todas as tuas inseguranças: porque de doem tanto, repercutem em mim.

Mas o que conta és tu. Conta tua dolorosa forma de gritar tua chaga que me abre chagas. Conta a tua alma desnudada como a minha, chagada, lacerada, iluminada.

*Escritora, jornalista e professora | Livro Revelações | Garanhuns, 2010.

Revelações - Parte II

Luzinette Laporte de Carvalho

Luzinette Laporte de Carvalho*

Eu poderia acusar-te de não teres compreendido. De teres tomado como um direito teu o que é puro dom.

O relacionamento é algo muito delicado. Porém, não te acuso: vens de um país estrangeiro, embora eu te sinta íntimo e familiar. Também sou estrangeira, apesar de encontrar-me em meus domínios: nesta terra deserta, ínvia, inaquosa. Estrangeira e autóctone da região hostil.

Chegaste. Abri-te a porta. Permiti que fosses o dono da minha casa (que passou a ser tua desde que transpuseste o limiar).

No momento em que tomaste o dom como um direito, quebraste não apenas as regras das boas maneiras, mas o encantamento de sermos dois estrangeiros que, mutuamente, se davam seus costumes, sua religião, sua fala, seu silêncio, sua música (ritmo pessoal), seus bens.

Prometemos que nos diríamos tudo; cumpro a promessa; percebi em ti a ausência de ternura e a sensação de posse. Temos de encontrar o meio de nos unirmos em/com amor. Deves ter percebido o que ocorreu: fiz-me terna, quase infantil, para diminuir o impacto de me teres aberto os olhos, introduzindo a mão e tocado o ferrolho da porta. E, como no Cântico dos  Cânticos, o apenas toque da tua mão comoveu-me até as entranhas e se deu a posse, sem a realização da entrega total, do abandono profundo.

Estranha paixão esta que não é paixão no sentido sensual, mas no de martírio. Martírio de sofrer-te, de assumir-te.

Para uma mulher é difícil não perceber tudo, não exigir tudo. Percebas ou não, quando isto sucede - a  posse sem ternura - eis que a distância cresce, cresce o abismo, a morte de alguma coisa bela e rara. A cada momento vivido. A cada instante.

Para mim não existe passado senão como soma de  coisas que estão presentes. Por isso, há em mim infância e adolescência. Morte. Vida. Há o medo e o  horror. (O horror me invade toda). Há busca, negação, interrogação, entrega. Demanda e caminhada.

Não sei se um dia conseguirei as palavras, os gestos que te digam tudo, porque não sei se há (verá) "um dia". Não sei se esse futuro já não é. Para mim, é! Somente não sei se estás pronto para o peso da minha verdade, tão mais pesada que o volume de todo o universo em gramas, que me deixa assim perplexa e  asfixiada. Trêmula como pequenina campânula ao vento.

Não posso ensinar-te como tocar-me. É uma aprendizagem que deves fazer. Assim como devo aprender a (não) tocar-te. A saber quanto de sentimento profundo pões ou não ao me tocares.

Estás sempre diante de mim como o desconhecido. Que sabes de mim e eu de ti? Que sabemos um do outro, de chaga em chaga, de alumbramento em alumbramento, de descoberta - positiva ou negativa - em descoberta?

Ponho-me diante da vida (morte) à espera da vida. À espera de tudo: um total. À espera do nada; outro total. Ponho-me à espera em ação, a caminho. Minha espera é esta caminhada: o coração e a alma em espectação diuturna.

Na caminhada, tu. Mais distante que todos os horizontes que tenho em mim. (Quero que conheças meus horizontes íntimos. Os horizontes exteriores só fogem aos olhos: estão sempre lá. Agora, os íntimos...)

Estou, sou, permaneço: ilha, continente, península, praia, céu, terra, vale, montanha. Canta em mim uma alegria trêmula de lágrimas pelas descobertas todas. Uma a uma.

O que procuras no meu rosto? Só há lágrimas e alegria. Estrelas obscuras, de primeira grandeza, no entanto. A distância em que se encontram, no meu íntimo, as oculta. Não as descobrirão senão os que me  amam (sem o único intuito de posse) e as crianças. Há que desarmar para olhá-las frente a frente: ofuscam.

Quanto a mim, eu as sofro, sei que se refletem no  meu rosto, sem que o possa impedir, sem que as possa controlar. Há uma lei de gravidade para essas estrelas, e não fui eu quem as criou. Uma lei absoluta que  desconheço e que sou obrigada a carregar, tal qual é.

Soluça e canta em mim, minha alegria, indefesa e  vulnerável. Como uma flor delicada ao vento forte, ao sol causticante, à chuva torrencial. Alimentando-se de tudo para sobreviver. Geralmente suas respostas são terríveis, porém, ela cresce, desenvolve-se, resiste, embora jamais perca sua delicadeza, sua doçura, sua ternura ardente.

Giram vertiginosos, em mim, os horizontes todos da vida, do homem, dos seres.

Tu permanece com teu fardo inextinguível de poesia e sensibilidade. Com teu fardo de angústia.

Sim, eu sei, não deverei tocá-lo, se não o pões diante dos meus olhos. Também tenho o meu: fardo de  alegria e dor.

Podemos apenas alternar-nos em compreensão e  comunhão. Lado a lado. Um olhar ou sorriso que  trocamos nos basta para o encontro mais profundo.

*Professora, jornalista e escritora / Garanhuns, PE - 2000.

Revelações - Parte IV

Luzinette Laporte de Carvalho

Luzinette Laporte de Carvalho*

Falei naturalmente, simplesmente. De coração aberto. Não quis violentar-te. E eis que tua face revelou-me o que eu jamais pudera imaginar: o poço, o abismo, a gruta, o miolo negro da  floresta e das profundezas. Tal foi a visão, que estarreço ao lembrá-la.

Vi tua face de dor. Relâmpago de treva e despenhadeiro que me atinge, me dilacera toda. Enquanto teus lábios, tua face apareceu-me. Peço-te perdão por tê-la visto. Jamais imaginei desnudar-te. Não foi por querer que vi.

Face de todas as tragédias, de todas as chagas. Não a face de um homem, mas de um deus atingido no  âmago. Relâmpago de dor tão terrível que se  me contrai a alma e me sangra o coração.

Eu não sabia... não sabia... Como poderia eu saber que uma palavra pudesse desnudar uma alma em  vértices e sorvedouros? Como poderia eu saber que  enfrentaria tua dor face a face? E veria a olho nu os  infinitos-longitudes, os abismos-latitudes, as vertigens-profundidades da tua alma? Mas vi! Está aqui. Para sempre guardada a revelação de ti, em mim: meu súbito mergulho até os abismos de ti-mesmo. E no entanto foi só um rito. Menos que um gesto. Um espasmo. Menos. O "flash" da tua dor de homem ferido.

Como Verônica, quero velar teu rosto desfeito. Ainda que não haja sangue visível, fluindo, eu sei. Eu vi a dor, o absurdo e o vazio dessa dor. E o nada. Pior é a  face se recompondo do que se decompondo. Foste rápido, efetivo.. A dor, porém, foi mais violentamente rápida e efetiva.

Ponho-me pois, de joelhos, ante a tua face desfeita, torturada, dolorosa. Não sei se o átimo fulminante da dor de ter visto, resgatará o átimo do rito de dor sobre tua face, impondo-se acima da tua vontade, rasgando-te a máscara, desvendando o homem, a sua chaga. Permanecerei de joelhos, em silêncio, enquanto estas rajadas de ventos de revelação campearem na minha alma e tudo em mim for campo devastado pela mais  inesperada e violenta visão de ti.

Quero revelar-te no meu silêncio despovoado, no deserto do meu silêncio, onde sopram ventos empurrando densos nevoeiros: tenho medo. Do que sou em ti e desconheço. Medo de ser-me em ti sem o saber. Medo de mim. Do que (não) sei de mim e de ti. De que estejas tal estou eu, e que, por um absurdo terrível, não tenhas a coragem da verdade: a força de romper, de  dizer tudo. Ou a força de atar, de dizer tudo. Porque no  romper ou atar, o importante é ter a força de dizer tudo.

Eu te confesso: não tenho a coragem nem de uma  coisa nem de outra: nem de criar laços em plena treva, nem de romper laços em plena trava. Sou uma trêmula alma jogada pela tua inconsciência e pela minha ignorância.

De tal maneira ignorante, que mais pareço sábia. Porque ouço, ausculto, tendo perceber, saber, mergulhar dos olhos abertos. Por isso pareço sábia. Porém, na realidade, absolutamente ignorante do jogo que fazem do amor e das pessoas, do que leva as pessoas a se magoarem umas às outras.

Vibra em mim, violenta, a interrogação: por que arrancar alguém de si mesmo se não há terreno para transplantar-lhe a alma, nem local para abrigar-lhe o coração? Eis o crime perpetrado. Por mero impulso vai-se ao coração e à alma do outro e neles se põe a mão sacrílega? Por que? Que força move e mão ao toque condenado?

Agora que meditei, de joelhos, levanto-me. Não percebo rumos para trilhar. Cega-me os olhos a visão do teu rosto, como um vento gelado e forte que me açoita. E densa névoa nada me deixa ver. Correm lágrimas de mim, dentro de mim. Meus olhos ardem, queimam. Meus lábios parecem petrificados. Sangram. Asseguro-te que  não é fácil a contínua busca do encontro permanente.

Um homem e uma mulher que se decidem a  caminhar juntos. Nada mais belo e mais terrível.

Por mais que eu tente... quando nos descobriremos um ao outro? Descobres a menina que mora em mim como desvendo eu a criança que vive em ti?

Não é que não vejas tantas outras coisas. Tenho certeza que vês. Mas é que, tudo o que provaste, eu já provei, porém tudo o que provei, tu não provaste.

*Professora, jornalista e escritora / Garanhuns,  ano 2000.

Maldição

João Marques dos Santos

João Marques | Garanhuns

Seja maldita a arma

a munição e o estampido

malditas as mãos

que fazem e que seguram

e apontam contra vida


maldito seja este poema

que me envergonha

e escorre uma lágrima de fogo.

euHerói - Capítulo 4

João Marques dos Santos

João Marques* | Garanhuns

Marcos de Safo vê pela primeira vez uma mulher nua, e se apaixona

Capítulo do amor, que, com o livro, não acaba. Tenho paixões. Duas mulheres que vejo e que entraram em mim pelos olhos. Assim, as desejo reais e inteiras entre os meus braços. Apaixonei pela beleza das duas. Meio santa em uma. Meio selvagem em outra, Helena, a irmã de Eloim, o amigo que procurei entre os estudantes. Conheço essa mulher, na manhã, quando sou ainda adolescente. O amigo me convida para ver os livros que tem em Literatura e Ciência. Vou e, já em sua casa, ele pede que entre, sente e aguarde, enquanto vai atender ao vizinho de saída para viagem. Acomodado na sala, diviso os livros. Uns poucos volumes sobre a mesinha do canto da sala. Um jarro de flores e um livro mais volumoso e atraente. Os miseráveis, de Victor Hugo.

Sala com outra porta interna que mostra ângulo do quarto perto. E, no quarto, vejo que há porta aberta que dá mais para dentro de casa, como são as casas mais simples. Aguardo a volta do amigo, quando vejo alguém entrar no quarto por essa porta de dentro, do outro lado. Eloim, ao sair, disse que sua irmã estava no banheiro de trás.

É ela, a irmã que não conheço. Sai do banho e vem com toalha azul cobrindo a nudez abaixo. Entra e se volta para o espelho da penteadeira. Súbito, solta a toalha no chão. Está em pé e de costas. Abro bem os olhos, para ver o que nunca havia visto. A bunda nuinha da mulher, perto de mim. O traço do meio dividindo duas porções curvas e macias. Maravilhosa aparição. O corpo molhado, original como fosse acabado ali para os meus olhos. Fica por poucos instantes. Mais atraente do que eu pudesse imaginar. Contemplo tudo, apesar de tão pouco tempo. Os cabelos pretos descendo ao meio das costas morenas. As coxas torneadas e erguidas como duas colunas de um templo. Mas, de repente, sai para lado, fora do alcance de meus olhos, e leva o corpo de mulher. Não posso mais ver e não tenho coragem de me aproximar da porta. Espero a volta sem tempo, como um sonho onde tudo é possível. Em seguida, ela volta para frente do espelho, já vestida, porém. Não me vê em nenhum momento. Fico excitado, contendo-me. O coração em ritmo acelerado. E, assim, fico julgando-me o homem mais feliz do mundo.

Eloim chega. Mostra os livros. Diz que sonha possuir uma biblioteca com prateleiras e tudo. Gosta de ler. Lê Marx e, cada vez mais, se fortalece na doutrina comunista. Não sou nada, afirma, mas um dia serei conhecido e famoso. Vai buscar a irmã e apresenta. Helena, diz. Ao tocar os seus dedos, antes de segurar-lhe as mãos, sinto profundamente o toque da paixão. A primeira paixão queimando como fogo. E começo a gostar, apesar de não conhecer bem Helena.

O rosto, de frente agora, é de uma deusa. Olhos negros, ligeiramente oblíquos, lábios sensuais, pela carnosidade e arcadura. A face rosada e bem formada, com a pele lisa. Tudo é bonito. A fala meiga de mulher tímida. Muito cuidado ao falar, pronunciando bem as palavras, e com a graça feminina. Com que doçura disse o meu nome. Marcos... com sorriso. Predomina contudo a visão da nudez. Por isso, guardo a imagem de Helena, como de uma mulher selvagem. E desejo-a, como sequer o rebento puro da natureza. A flor, o fruto, a brisa, a relva. Ou, numa imagem mais fiel, a fera de ser  domada pelo amor. Um acaso vê-la nua, que marcou minha vida. E as gotículas nos cabelos e de corpo abaixo nunca acabam de escorrer na imagem retida dos meus olhos.

Adolescente, sinto-me apaixonado. O amor dessa forma eu não havia conhecido antes. A paixão. Diferente do que ocorre entre mim e a Avenida. Helena vem exteriormente, de fora, e me assume. E, preso, não tenho como deixar de a desejar com ardor. Há um sentimento predominante de  posse e doação. Estranho, porém natural. Mulher que se levanta da Avenida, com toda sensualidade que me possa oferecer. Helena, na sua graça de fêmea, se torna minha paixão fervorosa. E, daí, me prontifico a conciliar meu relacionamento singular com a Avenida. E, também, com a Missão, que me conduz devotado a carregar na alma os sonhos e as realidades do dia. Helena e Senhorinha, distintas, são minhas paixões reais, na manhã. Não me encontro só. Tudo isso me dá motivação de viver, de sonhar e de incorporar sempre a poesia. Da Avenida, também.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

euHerói - Capítulo 3

João Marques dos Santos

João Marques* | Garanhuns

Explosões causam grandes destruições e, para maior transtorno de Marcos de Safo, quebram o espelho da sala, inclusive

Em outro canto, duas explosões imensas. A primeira abala a Avenida e destrói tudo por perto. A segunda, igual, com segundo de intervalo, aumenta a destruição, Cada uma soa medonho, por mil tiros de canhão. As vidraças caem todas. Portas e janelas, as mais próximas, e até de ferro, entram de casa a dentro, com o impacto. O espaço fica escurecido pela fumaça. A manhã se parte e é arremessada para fora. Faz-se tarde imediatamente. As sombras dificultam a visão, e parece a chegada do fim do mundo. Dão-se, ainda, mais espocares das bombas menores que haviam sido sacudidas em muitas direções. Corrida de pessoas para todos os lados, fugindo do desastre. Eu, ao contrário, vou para mais perto. Lembro de que havia duas barracas de fogos de artifício no local. Instaladas, para venda de fogos nos festejos juninos. Apesar do fumaceiro, dá para observar tisnadas as folhas das árvores. Galhos entortados. Árvores e ares voltados para o chão cheio de pedaços de papel. No ar, ainda morno, o odor de pólvora queimada.

Horror, Reflito sobre qual explicação haverá da provocação do desastre. Tudo tem causa. Barracas juninas não comportam tanta pólvora, tais foram as explosões. Certo, camuflagem um arsenal, para provisionar algum movimento suspeito. Dinamites, talvez. Ou, é de se suspeitar, a intenção foi isso mesmo. A destruição. Os bacanas têm planos de provocar desastres com a destruição. Visam afirmação no poder, para manobrar e provocar ações desonestas. Ou, muitas vezes, os males são em vingança de alguma coisa. Auferir vantagens, benefícios para o clube. As explosões foram provocadas por eles, provavelmente. Não tenho como provar. E as autoridades, à falta de certeza, são enganadas. É mal que se enraíza na Avenida e destrói. É evidente.

Vou verificar o rosto esfumarado no espelho. O meu fiel espelho. Encontro o vidro rachado. Fissuras de cima abaixo. Felizmente, não cai tudo. Não havia cacos pelo chão da sala. O reflexo partido, contudo. A janela aberta normalmente à frente, deixando passar para dentro um pedaço da Avenida. Imagem parcial do verde das árvores frontais e do azul do céu. O espelho é do rosto da Avenida. Dilacerando, agora. E o meu rosto no espelho, partido também. Súbito, Senhorinha aparece. Vejo-a no vidro. A imagem fragmentada. Os traços quebrados. O seu rosto igual aos traços de RV, que a desenhou em bico de pena. Eu a conheci inicialmente por meio desse artista da Avenida. A beleza tinha sido definida na arte de retratar. E muito bem concebida a conformação fisionômica. Mas se encontra triste agora, e tem a beleza comprometida. Não diz nada. O silêncio predomina após as explosões. Senhorinha está magoada e ferida. O espelho quebrado e triste.

Não é mais o rosto de antes. Nem os mesmos olhos, inteiros e brilhantes. Nem é mais o mesmo espelho. Os olhos grandes, como nos traços do artista. Cílios longos e sobrancelhas bem distribuídas. Nariz afilado e lábios macios. Vão de um canto a outro da boca em dois traços perfeitos. Nos lados do rosto, duas rosas de carne. E acima de tudo, na cabeça, lenço fino e estampado com flores. Tão bem assentado, que parece um turbante oriental. Isso dá à Senhorinha porte de mulher fidalga. Brincos longos, da graça da juventude, e o largo sorriso da Avenida. Espelha beleza, seriedade e amadurecimento. Ela me deixa à vontade em sua presença. Há entre nós intimidade de duas pessoas que pensam iguais. Seus sorrisos me dão emoção pela presença jovem e otimista. Não conheci de forma exterior, como numa apresentação ou aproximação casual. Foi como um sonho que vem e fica. Apesar de estar aparecendo sempre na sala, carrego a sua figura presente, quando vou pela avenida. O espelho encontra-se encostado em minha mente, também. A ligação entre mim a Senhorinha é igual ao fruto e seu sabor. Agradável sempre. Senhorinha tem a graça do sorriso da Avenida. É ela própria, penso, a paisagem viva. Inspira poesia no sorriso, na fala e no lenço florido da cabeça.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

Retrato de João Marques dos Santos

Retrato de João Marques dos Santos

Retrato de João Marques dos Santos, pintado pela aluna Isadora do 3º ano da Escola Municipal  Professora Giselda Vieira Belo, bairro São José - Garanhuns.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

REVISTA CULTURAL O SÉCULO - NÚMERO 134 - MARÇO DE 2024

Reticente

João Marques dos Santos

João Marques | Garanhuns, 10/03/2024

Sentado a vida

 - como se vive sentado!

eu me dobro

ao tempo e à espera

inseparável espera

que me sepulta

e ressuscita todo o dia


hoje, me faço de eterno

e enfrento o vazio

na pele dos objetos

e me perco e me acho

nos sonhos de existir

a vida me parece

véspera e me preparo

para as bodas

de um vinho emergente...

mas vale a pena cantar

e vale a pena morar

como vivo

de assento e chão. 

Lembranças para os amigos

Altamir Pinheiro
Altamir Pinheiro

João Marques* | Garanhuns

Quem se lembra, hoje, da vida de anos passados, sabe que é muito diferente agora. Os anos não são os mesmos de antes. Os tempos, digamos, das décadas de 1950, 60 e 70. De 1980, uns poucos, talvez. Esse tempo, por aí, foi de outra vivência. Do aspecto social, para não dizer humano, que é mais alarmante. Isso foi, aqui, numa cidade menor. As cidades grandes, acompanhei de longe. Quanto menor era o movimento urbano no dia a dia, melhor.

Eu vivi, também, a benesse desses anos. Os sonhos de um jovem pobre que, vindo do sítio, se deslumbra com a cidade. Como me lembro de tudo, das pessoas e das ruas. E de como foi tudo melhor. A mim, é claro, não coube esse "tudo" plenamente, mas a satisfação em estar em meio de todos. Observava e, naturalmente, vivia contente naquele espaço de maior motivação para viver.

ÉPOCA MAIS FAMILIAR

Dos acontecimentos sociais ou, geralizando, entre as passagens de intensa recordação, participei de algumas. Intensamente, quando as lembro como um tempo feliz. É que se vivia uma época mais familiar. As famílias melhor se relacionavam e todos, parentes e amigos, se misturavam na boa convivência.

Na rua, as pessoas se  cumprimentavam largamente. Muitas vezes, paravam, para uma conversa ligeira, quando se informavam de como estavam passando os outros. "Lembranças" para amigos e  conhecidos. Recomendações se faziam, pela melhor educação e grande diferença de tempo. Com a mulher, os mais velhos tinham trato especial, pela demonstração de respeito. Enfim, a vida era melhor vivida e melhor compartilhada. Assim, pude merecer a atenção dos níveis sociais mais adiantados e, com amabilidade, ficar conhecido na cidade. Hoje, é claro, sou muito mais conhecido. Pelo tempo de existência avançada e, principalmente, pelas conquistas. Não muitas, mas, ao menos, condição da glória de viver, ensinada pelos antigos: Gerar um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Fiz  tudo isso já. E, longe ainda da decrepitude, floresço como posso uma vida prestativa e útil. Cumprimento todos. 

Altamir Pinheiro, que foi meu companheiro do bando do Brasil, e é assinante da página Cinema, depois de ter a minha concordância, escreve neste mês de dezembro (2018), festivo, sua matéria sobre mim. E diz que sou "o artista" merecedor de suas referências, ocupando o espaço reservado às grandes estrelas da arte de interpretar bem a vida. Fico devendo, por isso, a criação de uma página dedicada à bondade dos amigos. E sinto que, apesar dos tempos diferentes, posso caminhar na Avenida, com o contentamento de estar entre irmãos. Muito obrigado, Altamir Pinheiro.

Obrigado Meu Deus


Águeda Cerqueira | Garanhuns, 22/12/1984

Obrigada meu Deus pelos pais que me destes; o que  seria de mim sem eles? Representam a mão que me segura, o farol que me guia, a palavra que me consola e o ensinamento que me esclarece.

Obrigada meu Deus pelos Irmãos que tenho e pela minha família.

Obrigada meu Deus pela minha vida. Como é maravilhoso estar viva. Puder sentir a vida; correr, brincar, jogar, gritar, participar, chorar e viver.

Obrigada meu Deus por tudo que tenho que sou. Sou nada meu Deus diante da Vossa Grandeza, mas muito sou diante do Vosso amor e da Vossa infinita bondade. Ajudai-me a ser cada vez melhor. Ajudai-me a ser humilde e saber perdoar como as grandes almas. Afastai de mim as coisas ruins e segurai a minha mão, para eu não cair quando tropeçar nas pedras do caminho de minha existência.

Obrigada meu Deus por saber que a vida é só um mar de rosas. Sei da existência dos espinhos. Ensinai-me não só a suportá-los mas necessariamente a arrancá-los de mim.

Obrigada meu Deus por ter um espírito relativamente forte. Ajudai-me a fortalecê-lo cada vez mais, para que nunca a inveja me domine, a maldade me contagie e a injustiça me deprima ou me corrompa.

Obrigada meu Deus pelas justas derrotas, porque só assim poderei valorizar as grandes vitórias.

Obrigada meu Deus por teres me dado a lágrima; quantas vezes precisamos lavar as nossas tristezas. 

Obrigada meu Deus por teres me ensinado tantas coisas lindas, dai-me a ventura de saber fazer uso delas. E seu um dia eu chegar a perder o sol, dai-me a capacidade de não chorar, para que as minhas lágrimas não me impeçam de ver outras estrelas.

Obrigado meu Deus pelo ar que respiro, pelas mãos com que escrevo, pelos meus ouvidos que me permitem distinguir o gotejar da chuva lá fora, do farfalhar das folhas no verão e da melodia que me comove. Os ouvidos são os canais da alma. Por estes canais passam as mais  diversas impressões, desde a palavra rude e grosseira que nos incomoda, até o sussurro suave gentil e carinhoso que nos agrada e deleita. Então meu Deus, dai-me a vestura de ouvir sempre e de sempre saber ouvir.

Obrigada meu Deus pelos meus olhos, que sendo perfeitos me permitem ver o colorido da vida. Como é bonito ver o sol a brilhar no nascente. Ainda mais bonito é ver o entardecer; quando os raios se confundem num misto de cores e reflexos, dentro de uma paisagem calma muitas vezes de raro resplendor.

Obrigada meu Deus por não ter defeito físico e poder participar das coisas boas da vida.

Obrigada meu Deus pela natureza, pela chuva que cai, pela cachoeira majestosa, pelo rio que corre, pelo céu, pela terra e pelo mar, que carinhosamente beija a areia da praia.

Obrigada meu Deus pelas noites prateadas que só a lua sabe embelezar.

Obrigada meu Deus pelos pequenos detalhes que fazem parte da nossa vida. Pelo riso que nos encanta, pela lágrima que nos comove, pela ternura, pela bondade, pela esperança, pela honestidade e pelo amor.

Obrigada meu Deus pelo amigo que encontramos e se encontramos.

Obrigada meu Deus pelo amigo que encontramos e sentimentos pela minha fé. Aumenta  a minha fé, ajudai-me nas horas difíceis que a vida se nos apresenta. Protegei-me contra todos os males. Dai-me a Vossa Benção e então poderei dormir tranquila e acordar feliz.

Ninguém nos separará do Amor de Cristo

Jesus Cristo

Marcilio Reinaux*

Sentado à beira mar, na Praia de Pau Amarelo, contemplo ao longe a linha do horizonte com um azul escuro logo acima do verde esmeralda forte. É domingo, primeiro dia de novembro. No meu tempo de menino em Garanhuns era um dia santo: Dia de Todos os Santos, que se ajuntava com o Dia de Finados, formando um duplo feriado. Hoje acabou. Só meio feriado com Finados. Um jornaleiro passa gritando "Diário, Comércio"... Fico na dúvida, não de qual jornal comprar, pois gosto de ambos, leio os dois diariamente e mais o Jornal da Semana do amigo Otoniel e como não poderia deixar de ser, recebo e leio a cada sete dias, este nosso "O Monitor", mercê da bondade do amigo confrade Lúcio Mário Pereira dos Santos. Mas voltando à dúvida da compra dos jornais, ela persiste pois lembro que só péssimas notícias irei ler neste domingo ensolarado. Tenho certeza de uma ou duas notícias boas, ficarão sufocadas pelas dezenas, centenas de notícias ruins que os jornais, a televisão e todos os meios de comunicação nos trazem a cada dia e a cada hora.

BOA NOVAS

Compro os dois. As notícias são  desalentadoras: aumento de gasolina, que incidirá ou provocará aumentos generalizados; preços liberados para mais de  uma centena de produtos; tarifas de serviços públicos (de péssima qualidade) majoradas. Tudo culminando com as notícias do índice inflacionário de dois dígitos que alcançaremos agora neste novembro (1987) principalmente. Isso para não falar da nossa política desencontrada, imediatista, sem lógica, sem rumo, sem entendimentos que nos deixam perplexos. Passo e repasso então os olhos pelos títulos principais e vejo que todos são de péssimas novas. Acabou-se o tempo da Boas Novas. Aliás de boas novas as últimas que ocorreram no mundo foram  aquelas que os anjos anunciaram a vinda do senhor Jesus Cristo. De lá para cá somente péssimas novas, com alguns momentos de exceção.

Falando em Cristo a mim me vem a lembrança de que somente na Sua Palavra, com o recado de Deus para a humanidade é que encontramos sempre coisas boas para as nossas vidas espirituais e consequentemente materias, numa decorrência lógica. Por exemplo na Carta de Paulo aos Romanos, capítulo oito versículos  de 31 a 38 vemos uma mensagem sumamente confortante diante do quadro caótico do mundo em que vivemos. "Se Deus é por nós, quem está contra nos?", começa o texto com esta indagação. E continua: "Aquele que nem mesmo a Seu próprio Filho poupou como não nos entregará com ele também todas as coisas"? Em seguida o escritor sagrado nos dá uma grande confiança ao dizer: "Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos intercede por  nós. Como não nos dará com ele todas as coisas? É Deus quem os justifica".

APÓSTOLO PAULO

Ler a Palavra de Deus é um lenitivo completo de salutar oportunidade de se ter paz espiritual e paz terrena, mesmo rodeados que somos e estamos de tantos problemas. E este mesmo texto, tão maravilhoso, tão completo, nos dá a certeza de que com Cristo seremos vencedores, ao  dizer: "Porque estou certo de que nem a vida, nem a morte, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades nem o presente, nem o porvir, nem a altura nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do Amor de Deus que está em Cristo Jesus Nosso Senhor". Este é o texto, ou um dos textos da Bíblia que mais a mim me conforta e me  traz uma alegria interior, quase indescritível. Portanto amigo leitor, descanse também no Senhor Jesus Cristo. E saiba que diante de tanta coisa ruim, a Palavra de Deus, com as suas verdades irremovíveis , permanece para sempre.

Continuo a leitura do Jornal do Comércio e do Diário de Pernambuco. Leio Nilo pereira, Marco Polo, Paulo Craveiro, Paulo do Couto Malta, Roberto Mota e tantos outros. Misturo as amenidades de uns, com os problemas narrados pelos outros. Tiro uma média e ainda só notícias ruins perduram na minha mente. Volto à Bíblia e o conforto espiritual enche meu coração com as palavras oportunas, aqui e agora do grande apóstolo Paulo em Romanos, Capítulo oito, versículos 31 a 38. Convido o amigo leitor a lê-las. 

*Jornalista e escritor | Recife, 21 de novembro de 1987.

Jornal O Século completa 29 anos


João Marques dos Santos* | Garanhuns

Em 1995, O Século começa. Garanhuns já era tida como uma cidade pioneira em jornais. O Monitor, de 1931, mantinha a liderança como mais antigo e de maior período em circulação. Uma página de  cultura, onde os poetas eram conhecidos. Lauro  Cysneiros, Antônio Galindo, Lício Neves, Maurilo Matos, Luzinette Laporte, Cesário de Almeida, José Mário Rodrigues, José Azevedo, todos foram apresentados pelo jornal O Monitor. Este editorialista, também. Teve direção por muito tempo, da página de cultura. E O Século surge oportunamente, para atender aos poetas crescentes na cidade, e aos cronistas literários. Advento providencial, porque 1 ano depois, O Monitor desaparece, entrando numa longa interrupção, de anos.

Vale registrar, aqui, a recepção histórica dada por Manoelzinho Gouveia ao novo jornal. Tendo nas mãos O Século, número 1, afirmou categoricamente que o jornal vinha, para ficar. E que ia marcar época em Garanhuns. Ficou O Século. Neste janeiro do vigésimo nono ano de circulação, o mensário atinge auge, conquistando o prestígio devido na cidade e em outros lugares, e sendo, inclusive, reconhecido pelo Brasil a fora.

Houve interrupções em sua circulação, mas qual o jornal do  Interior que não tem dificuldades, com poucos patrocinadores. O Século, por ser um jornal de cultura, tem mais dificuldades que os outros. Felizmente, há pessoas compreensivas. 

Assim, O Século vem cumprindo o seu objetivo, de manter a tradição cultural da terra, oferecendo páginas de história e de literatura. Com seriedade e bom gosto, não deixa de ser seletivo, mas dá sempre oportunidades aos que se iniciam escrevendo literatura. Conta atualmente com colaboradores ilustres, de nomes famosos no  País. E, por tudo isso,  diferença. O Século é um jornal que  melhor representa Garanhuns, defendendo a sua cultura e explicitando o que de mais sagrado, a sua alma.

euHerói - Capítulo 2

João Marques dos Santos

João Marques* | Garanhuns

Nota do autor - Publicação mensal neste jornal, por capitulo (63). Inicio: janeiro de 2024. Romance inédito, não publicado em livro, por falta de condições do autor.

Da reciprocidade e das adversidades entre o personagem e a Avenida

Começa o livro. Entro nele, como dentro de um baú mágico. Essa interiorização me faz incorporar o personagem e mover as coisas. É meu corpo estendido, no caso, ao longo da Avenida. Mas importa-me sobretudo a verticalidade, como da página, da letra levantada e do traço de exclamação acima do ponto. O corpo presente na dimensão de tudo, do existente e do inexistente. Do que nem sempre dá conta a percepção. Sobressai-se e é alguma coisa, sem eleger definições. O que pode ser, para se conter na Avenida. E há o que seja mais indefinível?... Assim, reparto-me, para caber como posso no capítulo que fala de flores ou de espinhos. Busca da razão de ser ou não (ser não), pela filosofia entranhada. E nomeio o que penso, para dizer e ter, e dar consistência ao corpo. A intenção é da mão que escreve mais, pela própria mão, pelo livro e por quem lê. Os personagens representam a existência e, menos in- tensos, a inexistência que possa caber na razão. Limeira, parado num canto, desaparece, mas consigo, ainda, ver algo como o nada em monumento. Alguma coisa, com nomeação e inexistência notável. A intenção do que escrevo e a intenção de quem lê são diferentes no tempo e no espaço. Presente, vivencio e cuido da Avenida, da minha intimidade. Ela me inicia e complementa. O leitor fica vendo o que passa, diferente. Espaço e intenção são de que tudo possa ser compreendido no dia, inteiro e único no conto.

O cassino. Cartas de baralho e dados da sorte, que é decidida também pelas roletas. E é excedida a fortuna pela má índole dominante. Não conta a sorte apenas. Os Bacanas, os senhores do cassino, manipulam o jogo e acertam sempre. É como querem, mandam na sorte, a deles e a dos outros. E muitos jogos e tramas concentram-se no cassino. O18lugar é sinistro. Não é o que deveria ser em lugar nobre da Avenida. Paro na calçada da frente, e fico à espreita, para entrar. O paredão frontal não é atraente. Janelas acima com a pintura desgastada. Nunca vistas abertas. Tabuleta sobre a  porta  do meio, com letras grandes. Café Boa Sorte. E mais abaixo, em sinais menores: Aberto Dia e Noite. À porta, dois homens vestidos de preto, guardando a entrada. Apesar da placa de café, o aspecto sombrio e a presença dos homens indicam a reserva do ambiente. Quem entra, só para tomar algum café, surpreende-se com a sofisticação.

Entro. Sala ampla com cortinas vermelhas nas janelas. Lustres com muitas luzes sob o forro de madeira, pintado de amarelo. As mesas cobertas com pano verde à moda da mesa de bilhar. Gente jogando ou, em pé, conversando e observando os que jogam. Um homem já velho em pé à mesa de jogo. A roleta é atrativa e gira fazendo barulho metálico. Movimento do eixo e da paleta passando pelos grampos que separam os números. O homem velho faz as apostas, marcando quatro ou cinco números. Emoção nos olhos e nas mãos. Entrega-se todo, de toda existência, como numa aventura decisiva. Vivencia parado ali um drama, seu envolvimento entre tantos, da Avenida. Pelas paredes, litografias com mulheres nuas mostrando o corpo discretamente. E, na parede do fundo, quadro mostrando três mulheres bem vestidas, de chapéu, segurando cartas de baralho em redor de uma mesa. Mesas e cadeiras espalhadas num canto do salão. Duas garçonetes vestidas a rigor, de avental curto e boina branca. Mais atraentes aos olhares são os degraus entapetados da escada larga, que dá acesso ao andar de cima. Ao pé da escada, um aviso bem à vista: Reservado.

Sala ampla e especial dos Bacanas e dos convidados, para o jogo de maiores lances. Desconfio de cometimentos fora da lei. Organização criminosa que, camuflada, promove a destruição. E o interesse em tudo é surrupiar. Observo tudo ao redor. Os comparsas estão sempre juntos, em grupos. Bem vestidos, chapéus de abas curtas, gravata, paletó mostrando a ponta de um lenço no bolsinho superior, sapatos em duas cores, branca e marrom. Olham para todos os lados, atentos, e mantêm gestos combinados, como senhas. Embaixo, tenho vontade de ir conhecer o "reservado". É arriscado. O interesse que tenho é descobrir o que fazem. Ir é arriscado demais. Eles não podem saber nada sobre mim. Tenho de assegurar que nada descubram. Tudo há de ser feito com fidelidade à Missão, que me preserva para a tarde. Preciso de um meio seguro, para não ser visto. Penso, então, ir em pensamento e à vontade. Posso ter conclusões importantes. E sinto que vou subindo a escada leve e invisível.

Mesa grande com cadeiras ao redor. Duas menores para o jogo de dados. Duas roletas com luzes sobrepostas. E outros móveis menores. Um retrato grande de Napoleão na parede, atrás da mesa. E bem à altura do alto da cabeça de Napoleão, um lustre de muitas lâmpadas e pesado. Homens sentados ao redor da mesa. Não jogam. Conversam sobre um plano de contrabando que vai render uma soma vultosa. E pensando, antes que me vejam, vou esconder- me no banheiro contiguo à sala. E de lá escutar o que tramam. Um homem com defeito no olho direito é quem comanda. Combinam entre si plano de como receber a mercadoria que chega pelo trem, e um meio de esconder. O esconderijo, na Avenida, é a caverna. Penso.

Não há lugar mais seguro. Assim, também, é o que pensa o homem defeituoso da vista.

Um homem se levanta e vem para o banheiro. Apavoro-me. Descubro imediatamente uma cortina de plástico azul separando o espaço para banho de chuveiro. Escondo-me atrás da cortina e fico abaixado e imóvel. O intruso entra. Meu medo aumenta. Mas, antes que me descubra, em pensamento saio. E ele não me vê. Volto, invisível, e me retomo na sala de baixo. Meu coração está apressado. Olho em volta, para certificar se alguém me observa. Nada. O susto é grande. Saio em definitivo, assustado. Considero que a realidade da Avenida e a imaginação andam muito mais próximas. É só questão de ir e vir. E tudo se oculta na realidade dos que caminham visíveis ou não.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

Revelações - Parte XXII

Luzinette Laporte de Carvalho* Divago este corpo (incorpóreo) leve, livre, lúdico, lúcido. Laços. Ligações. Larva da alma é o que ele é, meu...