Falei naturalmente, simplesmente. De coração aberto. Não quis violentar-te. E eis que tua face revelou-me o que eu jamais pudera imaginar: o poço, o abismo, a gruta, o miolo negro da floresta e das profundezas. Tal foi a visão, que estarreço ao lembrá-la.
Vi tua face de dor. Relâmpago de treva e despenhadeiro que me atinge, me dilacera toda. Enquanto teus lábios, tua face apareceu-me. Peço-te perdão por tê-la visto. Jamais imaginei desnudar-te. Não foi por querer que vi.
Face de todas as tragédias, de todas as chagas. Não a face de um homem, mas de um deus atingido no âmago. Relâmpago de dor tão terrível que se me contrai a alma e me sangra o coração.
Eu não sabia... não sabia... Como poderia eu saber que uma palavra pudesse desnudar uma alma em vértices e sorvedouros? Como poderia eu saber que enfrentaria tua dor face a face? E veria a olho nu os infinitos-longitudes, os abismos-latitudes, as vertigens-profundidades da tua alma? Mas vi! Está aqui. Para sempre guardada a revelação de ti, em mim: meu súbito mergulho até os abismos de ti-mesmo. E no entanto foi só um rito. Menos que um gesto. Um espasmo. Menos. O "flash" da tua dor de homem ferido.
Como Verônica, quero velar teu rosto desfeito. Ainda que não haja sangue visível, fluindo, eu sei. Eu vi a dor, o absurdo e o vazio dessa dor. E o nada. Pior é a face se recompondo do que se decompondo. Foste rápido, efetivo.. A dor, porém, foi mais violentamente rápida e efetiva.
Ponho-me pois, de joelhos, ante a tua face desfeita, torturada, dolorosa. Não sei se o átimo fulminante da dor de ter visto, resgatará o átimo do rito de dor sobre tua face, impondo-se acima da tua vontade, rasgando-te a máscara, desvendando o homem, a sua chaga. Permanecerei de joelhos, em silêncio, enquanto estas rajadas de ventos de revelação campearem na minha alma e tudo em mim for campo devastado pela mais inesperada e violenta visão de ti.
Quero revelar-te no meu silêncio despovoado, no deserto do meu silêncio, onde sopram ventos empurrando densos nevoeiros: tenho medo. Do que sou em ti e desconheço. Medo de ser-me em ti sem o saber. Medo de mim. Do que (não) sei de mim e de ti. De que estejas tal estou eu, e que, por um absurdo terrível, não tenhas a coragem da verdade: a força de romper, de dizer tudo. Ou a força de atar, de dizer tudo. Porque no romper ou atar, o importante é ter a força de dizer tudo.
Eu te confesso: não tenho a coragem nem de uma coisa nem de outra: nem de criar laços em plena treva, nem de romper laços em plena trava. Sou uma trêmula alma jogada pela tua inconsciência e pela minha ignorância.
De tal maneira ignorante, que mais pareço sábia. Porque ouço, ausculto, tendo perceber, saber, mergulhar dos olhos abertos. Por isso pareço sábia. Porém, na realidade, absolutamente ignorante do jogo que fazem do amor e das pessoas, do que leva as pessoas a se magoarem umas às outras.
Vibra em mim, violenta, a interrogação: por que arrancar alguém de si mesmo se não há terreno para transplantar-lhe a alma, nem local para abrigar-lhe o coração? Eis o crime perpetrado. Por mero impulso vai-se ao coração e à alma do outro e neles se põe a mão sacrílega? Por que? Que força move e mão ao toque condenado?
Agora que meditei, de joelhos, levanto-me. Não percebo rumos para trilhar. Cega-me os olhos a visão do teu rosto, como um vento gelado e forte que me açoita. E densa névoa nada me deixa ver. Correm lágrimas de mim, dentro de mim. Meus olhos ardem, queimam. Meus lábios parecem petrificados. Sangram. Asseguro-te que não é fácil a contínua busca do encontro permanente.
Um homem e uma mulher que se decidem a caminhar juntos. Nada mais belo e mais terrível.
Por mais que eu tente... quando nos descobriremos um ao outro? Descobres a menina que mora em mim como desvendo eu a criança que vive em ti?
Não é que não vejas tantas outras coisas. Tenho certeza que vês. Mas é que, tudo o que provaste, eu já provei, porém tudo o que provei, tu não provaste.
*Professora, jornalista e escritora / Garanhuns, ano 2000.
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