segunda-feira, 21 de julho de 2025

Revelações - Parte II

Luzinette Laporte de Carvalho

Luzinette Laporte de Carvalho*

Eu poderia acusar-te de não teres compreendido. De teres tomado como um direito teu o que é puro dom.

O relacionamento é algo muito delicado. Porém, não te acuso: vens de um país estrangeiro, embora eu te sinta íntimo e familiar. Também sou estrangeira, apesar de encontrar-me em meus domínios: nesta terra deserta, ínvia, inaquosa. Estrangeira e autóctone da região hostil.

Chegaste. Abri-te a porta. Permiti que fosses o dono da minha casa (que passou a ser tua desde que transpuseste o limiar).

No momento em que tomaste o dom como um direito, quebraste não apenas as regras das boas maneiras, mas o encantamento de sermos dois estrangeiros que, mutuamente, se davam seus costumes, sua religião, sua fala, seu silêncio, sua música (ritmo pessoal), seus bens.

Prometemos que nos diríamos tudo; cumpro a promessa; percebi em ti a ausência de ternura e a sensação de posse. Temos de encontrar o meio de nos unirmos em/com amor. Deves ter percebido o que ocorreu: fiz-me terna, quase infantil, para diminuir o impacto de me teres aberto os olhos, introduzindo a mão e tocado o ferrolho da porta. E, como no Cântico dos  Cânticos, o apenas toque da tua mão comoveu-me até as entranhas e se deu a posse, sem a realização da entrega total, do abandono profundo.

Estranha paixão esta que não é paixão no sentido sensual, mas no de martírio. Martírio de sofrer-te, de assumir-te.

Para uma mulher é difícil não perceber tudo, não exigir tudo. Percebas ou não, quando isto sucede - a  posse sem ternura - eis que a distância cresce, cresce o abismo, a morte de alguma coisa bela e rara. A cada momento vivido. A cada instante.

Para mim não existe passado senão como soma de  coisas que estão presentes. Por isso, há em mim infância e adolescência. Morte. Vida. Há o medo e o  horror. (O horror me invade toda). Há busca, negação, interrogação, entrega. Demanda e caminhada.

Não sei se um dia conseguirei as palavras, os gestos que te digam tudo, porque não sei se há (verá) "um dia". Não sei se esse futuro já não é. Para mim, é! Somente não sei se estás pronto para o peso da minha verdade, tão mais pesada que o volume de todo o universo em gramas, que me deixa assim perplexa e  asfixiada. Trêmula como pequenina campânula ao vento.

Não posso ensinar-te como tocar-me. É uma aprendizagem que deves fazer. Assim como devo aprender a (não) tocar-te. A saber quanto de sentimento profundo pões ou não ao me tocares.

Estás sempre diante de mim como o desconhecido. Que sabes de mim e eu de ti? Que sabemos um do outro, de chaga em chaga, de alumbramento em alumbramento, de descoberta - positiva ou negativa - em descoberta?

Ponho-me diante da vida (morte) à espera da vida. À espera de tudo: um total. À espera do nada; outro total. Ponho-me à espera em ação, a caminho. Minha espera é esta caminhada: o coração e a alma em espectação diuturna.

Na caminhada, tu. Mais distante que todos os horizontes que tenho em mim. (Quero que conheças meus horizontes íntimos. Os horizontes exteriores só fogem aos olhos: estão sempre lá. Agora, os íntimos...)

Estou, sou, permaneço: ilha, continente, península, praia, céu, terra, vale, montanha. Canta em mim uma alegria trêmula de lágrimas pelas descobertas todas. Uma a uma.

O que procuras no meu rosto? Só há lágrimas e alegria. Estrelas obscuras, de primeira grandeza, no entanto. A distância em que se encontram, no meu íntimo, as oculta. Não as descobrirão senão os que me  amam (sem o único intuito de posse) e as crianças. Há que desarmar para olhá-las frente a frente: ofuscam.

Quanto a mim, eu as sofro, sei que se refletem no  meu rosto, sem que o possa impedir, sem que as possa controlar. Há uma lei de gravidade para essas estrelas, e não fui eu quem as criou. Uma lei absoluta que  desconheço e que sou obrigada a carregar, tal qual é.

Soluça e canta em mim, minha alegria, indefesa e  vulnerável. Como uma flor delicada ao vento forte, ao sol causticante, à chuva torrencial. Alimentando-se de tudo para sobreviver. Geralmente suas respostas são terríveis, porém, ela cresce, desenvolve-se, resiste, embora jamais perca sua delicadeza, sua doçura, sua ternura ardente.

Giram vertiginosos, em mim, os horizontes todos da vida, do homem, dos seres.

Tu permanece com teu fardo inextinguível de poesia e sensibilidade. Com teu fardo de angústia.

Sim, eu sei, não deverei tocá-lo, se não o pões diante dos meus olhos. Também tenho o meu: fardo de  alegria e dor.

Podemos apenas alternar-nos em compreensão e  comunhão. Lado a lado. Um olhar ou sorriso que  trocamos nos basta para o encontro mais profundo.

*Professora, jornalista e escritora / Garanhuns, PE - 2000.

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