segunda-feira, 21 de julho de 2025

euHerói - Capítulo 4

João Marques dos Santos

João Marques* | Garanhuns

Marcos de Safo vê pela primeira vez uma mulher nua, e se apaixona

Capítulo do amor, que, com o livro, não acaba. Tenho paixões. Duas mulheres que vejo e que entraram em mim pelos olhos. Assim, as desejo reais e inteiras entre os meus braços. Apaixonei pela beleza das duas. Meio santa em uma. Meio selvagem em outra, Helena, a irmã de Eloim, o amigo que procurei entre os estudantes. Conheço essa mulher, na manhã, quando sou ainda adolescente. O amigo me convida para ver os livros que tem em Literatura e Ciência. Vou e, já em sua casa, ele pede que entre, sente e aguarde, enquanto vai atender ao vizinho de saída para viagem. Acomodado na sala, diviso os livros. Uns poucos volumes sobre a mesinha do canto da sala. Um jarro de flores e um livro mais volumoso e atraente. Os miseráveis, de Victor Hugo.

Sala com outra porta interna que mostra ângulo do quarto perto. E, no quarto, vejo que há porta aberta que dá mais para dentro de casa, como são as casas mais simples. Aguardo a volta do amigo, quando vejo alguém entrar no quarto por essa porta de dentro, do outro lado. Eloim, ao sair, disse que sua irmã estava no banheiro de trás.

É ela, a irmã que não conheço. Sai do banho e vem com toalha azul cobrindo a nudez abaixo. Entra e se volta para o espelho da penteadeira. Súbito, solta a toalha no chão. Está em pé e de costas. Abro bem os olhos, para ver o que nunca havia visto. A bunda nuinha da mulher, perto de mim. O traço do meio dividindo duas porções curvas e macias. Maravilhosa aparição. O corpo molhado, original como fosse acabado ali para os meus olhos. Fica por poucos instantes. Mais atraente do que eu pudesse imaginar. Contemplo tudo, apesar de tão pouco tempo. Os cabelos pretos descendo ao meio das costas morenas. As coxas torneadas e erguidas como duas colunas de um templo. Mas, de repente, sai para lado, fora do alcance de meus olhos, e leva o corpo de mulher. Não posso mais ver e não tenho coragem de me aproximar da porta. Espero a volta sem tempo, como um sonho onde tudo é possível. Em seguida, ela volta para frente do espelho, já vestida, porém. Não me vê em nenhum momento. Fico excitado, contendo-me. O coração em ritmo acelerado. E, assim, fico julgando-me o homem mais feliz do mundo.

Eloim chega. Mostra os livros. Diz que sonha possuir uma biblioteca com prateleiras e tudo. Gosta de ler. Lê Marx e, cada vez mais, se fortalece na doutrina comunista. Não sou nada, afirma, mas um dia serei conhecido e famoso. Vai buscar a irmã e apresenta. Helena, diz. Ao tocar os seus dedos, antes de segurar-lhe as mãos, sinto profundamente o toque da paixão. A primeira paixão queimando como fogo. E começo a gostar, apesar de não conhecer bem Helena.

O rosto, de frente agora, é de uma deusa. Olhos negros, ligeiramente oblíquos, lábios sensuais, pela carnosidade e arcadura. A face rosada e bem formada, com a pele lisa. Tudo é bonito. A fala meiga de mulher tímida. Muito cuidado ao falar, pronunciando bem as palavras, e com a graça feminina. Com que doçura disse o meu nome. Marcos... com sorriso. Predomina contudo a visão da nudez. Por isso, guardo a imagem de Helena, como de uma mulher selvagem. E desejo-a, como sequer o rebento puro da natureza. A flor, o fruto, a brisa, a relva. Ou, numa imagem mais fiel, a fera de ser  domada pelo amor. Um acaso vê-la nua, que marcou minha vida. E as gotículas nos cabelos e de corpo abaixo nunca acabam de escorrer na imagem retida dos meus olhos.

Adolescente, sinto-me apaixonado. O amor dessa forma eu não havia conhecido antes. A paixão. Diferente do que ocorre entre mim e a Avenida. Helena vem exteriormente, de fora, e me assume. E, preso, não tenho como deixar de a desejar com ardor. Há um sentimento predominante de  posse e doação. Estranho, porém natural. Mulher que se levanta da Avenida, com toda sensualidade que me possa oferecer. Helena, na sua graça de fêmea, se torna minha paixão fervorosa. E, daí, me prontifico a conciliar meu relacionamento singular com a Avenida. E, também, com a Missão, que me conduz devotado a carregar na alma os sonhos e as realidades do dia. Helena e Senhorinha, distintas, são minhas paixões reais, na manhã. Não me encontro só. Tudo isso me dá motivação de viver, de sonhar e de incorporar sempre a poesia. Da Avenida, também.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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