segunda-feira, 21 de julho de 2025

euHerói - Capítulo 3

João Marques dos Santos

João Marques* | Garanhuns

Explosões causam grandes destruições e, para maior transtorno de Marcos de Safo, quebram o espelho da sala, inclusive

Em outro canto, duas explosões imensas. A primeira abala a Avenida e destrói tudo por perto. A segunda, igual, com segundo de intervalo, aumenta a destruição, Cada uma soa medonho, por mil tiros de canhão. As vidraças caem todas. Portas e janelas, as mais próximas, e até de ferro, entram de casa a dentro, com o impacto. O espaço fica escurecido pela fumaça. A manhã se parte e é arremessada para fora. Faz-se tarde imediatamente. As sombras dificultam a visão, e parece a chegada do fim do mundo. Dão-se, ainda, mais espocares das bombas menores que haviam sido sacudidas em muitas direções. Corrida de pessoas para todos os lados, fugindo do desastre. Eu, ao contrário, vou para mais perto. Lembro de que havia duas barracas de fogos de artifício no local. Instaladas, para venda de fogos nos festejos juninos. Apesar do fumaceiro, dá para observar tisnadas as folhas das árvores. Galhos entortados. Árvores e ares voltados para o chão cheio de pedaços de papel. No ar, ainda morno, o odor de pólvora queimada.

Horror, Reflito sobre qual explicação haverá da provocação do desastre. Tudo tem causa. Barracas juninas não comportam tanta pólvora, tais foram as explosões. Certo, camuflagem um arsenal, para provisionar algum movimento suspeito. Dinamites, talvez. Ou, é de se suspeitar, a intenção foi isso mesmo. A destruição. Os bacanas têm planos de provocar desastres com a destruição. Visam afirmação no poder, para manobrar e provocar ações desonestas. Ou, muitas vezes, os males são em vingança de alguma coisa. Auferir vantagens, benefícios para o clube. As explosões foram provocadas por eles, provavelmente. Não tenho como provar. E as autoridades, à falta de certeza, são enganadas. É mal que se enraíza na Avenida e destrói. É evidente.

Vou verificar o rosto esfumarado no espelho. O meu fiel espelho. Encontro o vidro rachado. Fissuras de cima abaixo. Felizmente, não cai tudo. Não havia cacos pelo chão da sala. O reflexo partido, contudo. A janela aberta normalmente à frente, deixando passar para dentro um pedaço da Avenida. Imagem parcial do verde das árvores frontais e do azul do céu. O espelho é do rosto da Avenida. Dilacerando, agora. E o meu rosto no espelho, partido também. Súbito, Senhorinha aparece. Vejo-a no vidro. A imagem fragmentada. Os traços quebrados. O seu rosto igual aos traços de RV, que a desenhou em bico de pena. Eu a conheci inicialmente por meio desse artista da Avenida. A beleza tinha sido definida na arte de retratar. E muito bem concebida a conformação fisionômica. Mas se encontra triste agora, e tem a beleza comprometida. Não diz nada. O silêncio predomina após as explosões. Senhorinha está magoada e ferida. O espelho quebrado e triste.

Não é mais o rosto de antes. Nem os mesmos olhos, inteiros e brilhantes. Nem é mais o mesmo espelho. Os olhos grandes, como nos traços do artista. Cílios longos e sobrancelhas bem distribuídas. Nariz afilado e lábios macios. Vão de um canto a outro da boca em dois traços perfeitos. Nos lados do rosto, duas rosas de carne. E acima de tudo, na cabeça, lenço fino e estampado com flores. Tão bem assentado, que parece um turbante oriental. Isso dá à Senhorinha porte de mulher fidalga. Brincos longos, da graça da juventude, e o largo sorriso da Avenida. Espelha beleza, seriedade e amadurecimento. Ela me deixa à vontade em sua presença. Há entre nós intimidade de duas pessoas que pensam iguais. Seus sorrisos me dão emoção pela presença jovem e otimista. Não conheci de forma exterior, como numa apresentação ou aproximação casual. Foi como um sonho que vem e fica. Apesar de estar aparecendo sempre na sala, carrego a sua figura presente, quando vou pela avenida. O espelho encontra-se encostado em minha mente, também. A ligação entre mim a Senhorinha é igual ao fruto e seu sabor. Agradável sempre. Senhorinha tem a graça do sorriso da Avenida. É ela própria, penso, a paisagem viva. Inspira poesia no sorriso, na fala e no lenço florido da cabeça.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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