segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O sapato florido


Paulo Gervais | Garanhuns, 31 de dezembro de 1994

Gosto de lembrar às pessoas o que senti quando vivi pela primeira vez aquele quadro de Van Gogh que reproduz um par de sapatos. À luz daquelas cores o que impressiona e desconserta é a beleza que simples sapatos podem ter. A gente pode creditar essa beleza inusitada à capacidade do pintor de imprimi-la às coisas - insusceptíveis de beleza por si sós - ou ainda, creditá-la à sensibilidade do observador, lembrando o que disse o poeta russo Joseph Brodsky: "que a realidade , por si mesma, não vale nada; é a percepção que dá sentido a realidade"; ou então admitir que as coisas já trazem em si essa beleza, que o artista se incumbe de revelar.

Se está em mim, que a imprimo às coisas - atuando como um criador de beleza ou se está no íntimo das coisas, de onde a retiro para revelar às pessoas - atuando como um descobridor de beleza, não sei ao certo. Sei todavia, que uma realidade nova surge a partir dessa criação, ou descoberta.

Desde que vi pela primeira vez aqueles sapatos pintados por Van Gogh, qualquer sapato jamais seria o mesmo. Eu olharia sempre de um jeito diferente os velhos sapatos.

De uma forma ou de outra, é com este desafio que cotidianamente a gente se defronta - de fazer o que fez Van Gogh -, de dar às coisas da vida sempre uma nova possibilidade: a possibilidade da beleza, em razão do que também se oportuniza uma forma melhor de se relacionar com elas, de modo mais substantivo.

Recordo agora o título de um livro de Mário Quintana: "o Sapato Florido", e uns versos do poeta japonês Matsuo Bashô, escritos a propósito de um presente que lhe fizeram de "dois pares de sandálias de cordões azuis".

Sobre o livro de Quintana, comenta Tânia Carvalhal: "... o poeta colhe no dia-a-dia elementos banais, tão simples e opacos que pareciam não poder fornecer material para a poesia, e ele os integra ao domínio poético. Dá-lhes um novo sentido (...) o poeta age como se retirasse uma capa  que está a encobrir o sentido íntimo do que observa; (...) desvela a face mais superficial e a dota de uma importância antes não percebida. (...) Ao carregar as coisas simples e banais para o território da poesia, Quintana as retira do seu destino efêmero e lhes assegura uma sobrevivência maior."

Quanto aos versos do poeta japonês, eu os reproduzo textualmente, como os traduziu Olga Savary:

"pétalas de lírios

atarão meus pés:

Correias de minhas sandálias"

A partir dessa possibilidade de beleza, que a arte enseja, a gente descobre que os sapatos - não somente aqueles do livro - mas estes que se calçam, podem realmente florir, e que a metáfora que se faz entre as correias das sandálias e as pétalas de lírios - é mais que uma transferência recíproca de significados entre realidades diversas; é também e sobretudo a constatação de uma identidade profunda entre estas realidades, num plano em que esta identificação é possível - e pode ser realizada concretamente - instituindo relação mais significativa e desejável com as coisas da vida.

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