segunda-feira, 10 de junho de 2024

Gonzagão e o permanente flagelo da seca em forma de canção


Manoel Neto Teixeira* | Garanhuns, julho de 2013

- Quero ser lembrado como sanfoneiro que amou e cantou muito o seu povo, o Sertão; que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, os covardes, o amor.

A recomendação, textual, é do próprio Gonzagão, o Rei do Baião, ele que tinha ciência e consciência da abrangência da sua obra, seu canto e sua sanfona, a inigualável interpretação da realidade e da cultura popular nordestina: a terra, o homem e o meio ambiente, onde o flagelo da seca foi uma constante e tema inarredável de grande parte da sua obra musical.

A seca foi decantada nos seus principais clássicos, como a Triste Partida (letra de Patativa do Assaré), Asa Branca (letra de Humberto Teixeira), Vozes da Seca (parceria com Zé Dantas), entre dezenas de outras canções.

Mesmo vivendo, desde o inicio de sua carreira, a maior parte do tempo entre o Rio e São Paulo, Gonzagão jamais mudou o seu linguajar de bom sertanejo; isso está retratado no clássico sob o título "No Ceará não Tem Disso não" (parceria com Guido de Moraes):

Nem que eu fique aqui dez anos / Eu não me acostumo não / Tudo aqui é diferente / Dos costumes do Sertão.

Certa feita, entrevistado no programa de Geraldo Freire, Rádio Jornal do Commercio no Recife, comentando o jeito de falar do nordestino, lembrou um fato hilariante ocorrido numa das ruas de São Paulo quando fora abordado por um matuto recém-chegado à capital bandeirante, mas já imitando o paulistano; Gonzagão então lhe pergunta: você é daqui mesmo? O caboclo lhe responde: não senhor, estou aqui faz seis meses". Aí Gonzagão disparou: "Você tá feito papagaio, nem imita direito o paulistano nem fala mais como nordestino; eu estou aqui há 50 anos e nunca mudei meu linguajar".

No seu livro "A Oralidade e a Imagética em Luiz Gonzaga (uma análise de conteúdo da obra musical do Rei do Baião)", o jornalista e professor José Mário Austregésilo faz um paralelo entre Gonzagão e Euclides da Cunha, este, autor do clássico ""Os Sertões"; tanto num quanto noutro, encontramos a visão estereotipada, segundo Austregésilo, pois, para Gonzagão, "todo sertanejo é vaqueiro", enquanto para Euclides da Cunha, "todo sertanejo é antes de tudo um forte".

Argumenta José Mário: "Afirmações do tipo "todo sertanejo é vaqueiro" funcionam indicando este tipo de símbolo como ícone do Nordeste. Ao lado de vaqueiros, figuras como cangaceiros, jagunços, coiteiros, rezadeiras, lavradores, delegados, soldados, rendeiras, padres, parteiras, etc, formando esse universo representativo do homem da terra, como se no Nordeste não houvessem professores, doutores, juízes e outras profissões absolutamente normais de serem exercidas".

O Nordeste brasileiro, visto como representação, é um grande espaço da saudade, e o baião, criado como símbolo da região, surge pelas mãos (sanfona) e o canto de Gonzagão, com conteúdos e narrativas recorrentes sobre a seca e o consequente êxodo rural.

O próprio Gonzagão é um desses retirantes, na medida em que, aos 18 anos de idade, incompletos, ao levar uma surra da mãe, Santana, porque havia desafiado um coronel, ameaçando-o de morte, pelo fato de haver negado a mão da sua filha para "o moleque Luiz Gonzaga se casar", deixa Exu, seu torrão natal, e se manda para o Rio de Janeiro e São Paulo, por onde inicia sua carreira artística. Ele confessa em uma de suas gravações: "Eu queria era ser artista, artista do Nordeste".

Mas o fenômeno da seca, antes de ser apenas um flagelo socioeconômico e permanente desafio até hoje não superado ou resolvido, passa a ser tema e fonte de inspiração para a grandiosa obra musical de Gonzagão, juntamente com seus parceiros, em especial Humberto Teixeira e Zé Dantas.

A seca que aí está é das mais renitentes dos últimos 50 anos, segundo os meteorologistas, com desafios e estragos irreparáveis para os nordestinos. Antes de ser um fenômeno que reaparece de tempos em tempos, é uma característica climática da região, apenas se manifesta mais forte em dados momentos, épocas, portanto uma condição natural, não devendo ser vista como novidade, o inesperado. Falta, isto sim, infraestrutura para convivência com o fenômeno, sem os traumas e prejuízos como a mortandade dos rebanhos e os impactos na flora e nas lavouras.

Esse fenômeno é destaque na obra musical desse nordestino genial, através dos seus principais sucessos; tantos e tantos, como "Légua Tirana", parceria com Zé Dantas; vejamos a letra, como o linguajar próprio e grafia da época:

Ai que estrada tão comprida / Mais que légua tão tirana / Ai se eu tivesse asa / Inda hoje eu via Ana / Quando o sol tostou as fôia / Fui inté o Juazeiro / Pra fazê uma oração / Tô vortando estrupiado / Mais alegre o coração / Padim Ciço ouviu minha prece / Varei mais de vinte serra / De alpercata e pé no chão / Mesmo assim cuma inda falta / Pra chegar no meu Sertão / Trago um terço pra Dasdore / Pra Reimundo um violão / E pra ela e ela / Trago eu e o coração.

A superstição, inerente à crendice popular na cultura nordestina, também se faz presente no repertório da seca, com a toada "Acauã", parceria com Zé Dantas:

Acauã, acauã vive cantando / Durante o tempo de verão / No silêncio das tardes agorando / Chamando a seca pro Sertão / Ai acauã raam, am, am / Teu canto é penoso e faz medo / Te cala acauã / Que é pra chuva voltar cedo / Toda noite no Sertão / Canta o João corta-pau / A coruja mãe da lua / A peitica e o bacurau / Na alegria do inverno / Canta sapo, jia e rã / Mas na tristeza da seca / Só se ouve acauã.

Outra obra prima, sob o título "Vozes da Seca", gravada em 1950, portanto mais de 60 anos já se passaram e a seca continua desafiando; letra que envolve melodia e conteúdo político, inclusive com sugestões capazes de minimizar o fenômeno, como barragens, açudagem, e serviços para o trabalhador, clássico concebido em parceria com Zé Dantas. Vejamos a letra, com a grafia e o linguajar da época:

Seu doutô, os nordestino / Tem muita gratidão / Pelo auxílio dos sulista / Nesta seca do Sertão / Mas doutô, uma esmola / A um home que é são / Ou lhe mata de vergonha / Ou vicia o cidadão / É por isso que pedimo / Proteção a vomicê / Home por nós escoído / Para as rédeas do podê / Doutô dos vinte estado / Tempos oito sem chover / Veja bem, quase a metade / Do Brasil tá sem comê / Dê serviço ao nosso povo / Encha os rios de barragem / Livre assim nós da esmola / Que no fim dessa estiage / Lhe pagamo até os juro / Sem gastar nossa corage / Se o douto fizer assim / Salva o povo do Sertão / Se um dia a chuva vim / Nunca mais nós pensa em seca / Vai dá tudo neste chão / Como vê, nosso destino / Mecê tem na vossa mão.

VACA ESTRELA, BOI FUBÁ

O gado (boi e vaca) figura como elemento concreto e fonte de inspiração para os aboios, evocações sentimentais na obra de Gonzagão, onde o fenômeno da seca constitui princípio, meio e fim de grande parte das suas canções. "Vaca Estrela e Boi Fubá", letra do poeta cearense Patativa do Assaré, musicalidade e interpretação desse ilustre filho de Exu, é outra dessas pérolas que transcrevemos a seguir:

Seu douto, me dê licença / Pra minha história conta / Hoje eu tô na terra estranha / É bem triste o meu pena / Eu já fui muito feliz / Vivendo no meu lugá / Eu tinha cavalo bom / E gostava de campeã / Todo dia eu aboiava / Na porteira do currá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá>

Eu sou filho do Nordeste / Não nego meu naturá / Mas uma seca medonha / Me tangeu de lá pra cá / La eu tinha o meu gadinho / Não é bom nem imaginá / Minha vaca estrela / E o meu bonito boi fubá / Quando era de tardizinha / Eu começava a aboiá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá.

Aquela seca medonha / Fez tudo se atrapaiá / Não nasceu capim no campo / Para o gado sustenta / O sertão esturrico / Fez os açude secá / Morreu minha vaca estrela / Se acabou meu boi fubá / Perdi tudo quanto tinha / Nunca mais pude aboiá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá.

Hoje nas terra do sul / Longe do torrão natá / Qaundo eu vejo em minha frente / Uma boiada passa / As água corre dos oios / Começo logo a chorá / Lembro minha vaca estrela / E o meu lindo boi fubá / Com saudade do Nordeste / Dá vontade de aboiá / Êe, êe, êe vaca estrela / Ôo, ôo, ôo boi fubá.

Com essas e tantas outras canções, Gonzagão eternizou sua obra, voltada, em grande parte, para o tema, certamente o maior flagelo do povo nordestino; igualmente da terra, dos animais, da economia, enfim, esse fenômeno que, segundo os cientistas e ecologistas, é inerente à realidade climática da região. Daí o equívoco dos políticos que, covarde e sorrateiramente, buscam "combater" a seca com medidas paliativas, como o carro-pipa, que, no fundo, só beneficia alguns poucos, acostumados a tirar proveito dessas circunstâncias. O Nordeste precisa de ações estruturadoras, definitivas, a exemplo da revitalização, reflorestamento e consequente transposição do Rio São Francisco, obra iniciada e interrompida tantas vezes, com as construtoras deitando e rolando numa gatunagem sem medidas.

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