sábado, 19 de agosto de 2023

Revelações - Parte XVII


Luzinette Laporte de Carvalho*

Mapa / caminho e caminheiro. Eis o que sou. Tu és estrangeiro. Eu também. Estrangeira: Outra tradição / outros costumes / outra linguagem / outra terra. A única grande coisa que temos em comum: o amor.

Estou descobrindo a outra face da alegria. Ela se  mostra tão de leve / tão timidamente que temo fazer um gesto, dizer uma palavra, para não assustá-la, para  descobrir qual seu jeito, como é. Uma alegria de retorno. Parecida com a dos  Salmos. Alegria de volta, de  libertação: parece-nos sonhar: nossos passos nos levam de volta ao que é - e será sempre. Parecia-nos que  sonhávamos: a volta... Que não aconteça o errar pelo deserto sem jamais chegar. Urge que se encontre Canaã.

Todas as ondas da dor se elevam, tão altas, tão fortes, e a alegria sorri docemente, como a dizer: confia, eu venci o mundo. Eu venci sempre. É sobre a dor que  broto. Não por sadismo, mas por misericórdia. Se eu não me tornasse surfista sobre essas vagas todas, como ficariam os corações, as almas dos homens? Mas, embora a ousadia de enfrentar as ondas seja tanta, ela é  de uma timidez exasperante. Ah! Vem e mostra-me teu sorriso permanentemente. Vem e permanece. Estou tentando aprender. Estou tentando aprender o  desaprendido. Porque um dia eu soube. Se não sei mais,  é porque assim me levaram para longe de mim-mesma. (Re)trono. Parece-me sonhar.

Ouço os cantos de chamamento. A voz me envolve, braços me enlaçam. Tudo se organiza e estrutura para reter-me. É um canto profundo de uma  gravidade quase dolorosa, mas cheio de promessas, como o canto de Vênus e Tannhauser. Como este, também lhe respondo por vezes, até que atinjo uma explosão de dor, um grito de sofrimento. E é ainda a dor que me traz essa face tímida da alegria, que me leva a descobri-la. E faço a descoberta: ela sempre esteve lá. Eu é que não a discernia, não lhe descobria o doce sorriso de esperança conquistada.

Seu futuro te disse. A esperança em mim é algo tão verde e vivo e renovado! Ela é. Está. Poderás dizer-me: mas, todo mundo sabe disso:  que a esperança não morre. O que eu, porém, quero dizer-te é que descobri que a esperança é a alegria. Em mim. Que a esperança traz o sorriso aos lábios trêmulos, ao olhar que lacrimeja. A alegria é a esperança, por isso ela não pode morrer. E se tu julgas que não conheces a alegria, é que não descobriste ainda de que essência é feita a esperança. Sua força. Sabes, é como em física, um corpo tem substância = massa. Tem volume = extensão da massa = espaço ocupado pelo corpo. E tem a "força" = seu  "peso". A esperança também. Faze a correlação entre esperança e alegria e  verás. Deixo-te o problema. A  incógnita não é a esfinge. É uma suave incógnita translúcida e iluminada. talvez nem chegue a ser  incógnita. Nós é que, absurdamente, nos perdemos no  retorno. Como se não nos lembrássemos mais do país de  origem. Da casa do Pai.

Estrangeiro és para mim. (Conheço mais do teu país, onde tudo é meu. Eis por que sou mais estrangeira do que tu). Tu não sabes quase nada ou nada de meus costumes primeiros, únicos e maiores. Espero a chegada de Alguém. Estou certa de que chega a cada momento. E quando parece que se foi, é que aceitei deuses estranhos. O que é grave. É Ele quem me dá esta característica de estrangeira, onde quer que eu vá. Ao mesmo tempo que me torna irmã, como aquele que se  fraternizou com toda a natureza.

Quando mais dEle me distancio, menos sei quem sou eu. Porque sou menos eu-mesma. Se buscas alguém instalado, não me procures. Sou estrangeira. Estranha do mundo dos que se vão com todos. Não, eu posso ir, porque meus costumes são estranhos. Como estranhos meus valores, minha linguagem, meu sentir. Se queres podes ir. E não serás mais um estrangeiro entre eles. Aceitarás suas leis, sua linguagem, seus costumes. E te afastarás tanto do que sou, que a cor em mim se apagará. Haverá somente uma doce tristeza dolorosa. Eu  te verei ir como todos os outros, sem poder ao menos dar-te um sorriso, ou lágrimas ou um aceno. Não poderei fazer nada. Esperarei que descubras a tua verdadeira estirpe. O diferente que és da massa, a qual te misturas. (Espero que isto não aconteça: seres massa. Se já aconteceu, aguardarei que chegue a hora de emergires). Como uma vez te vi: sozinho, solitário, estrangeiro, em  demanda. Angústia e interrogação. Somente assim te  reconheço. Porém, quando sentas como todos ao redor das panelas de carne, quando abandonas o deserto e sua imensidão, não te reconheço mais. Preciso fechar os olhos e rezar.

Para te ser sincera, não é doloroso assim. Julgava eu que iria morrer de angústia ao ver-te mimético. Não é o que sucede. Na verdade, o que sinto é esta lassidão, este desencanto suave. Uma espécie de não-sei-quê macio, desagradável, porém não aqueles espinho de  fogo que eu temia. Aquela chaga sem fundo. Aquela desolação. Tem qualquer coisa de uma calma resignada, ou de uma descoberta de algo já sabido e não querido ser olhado de frente... Algo de um (re)conhecimento anterior. Que se faz esclarecimento é óbvio.

Quero que saibas que isto não é desprezo. É constatação. Constato que te custa ser um estrangeiro. Mas profetizo: não estarás bem como os que vivem à volta das panelas de carne, em escravidão. Verás. Eu sei, porque te conheço.

Por quanto tempo irás suportar a mesma situação? A mesma comida: panela de carne. A mesma gente esfaimada e (re)clamante. As exigências de um mesmo hábito único. Por quanto tempo... Olho daqui do deserto. Do alto do rochedo. Vejo o mar muito além, à frente. Atrás, o bruxulear do fogo sob as trempes onde a carne cozinha. Para o paladar comum que não se satisfaz com o maná.

*Professora e escritora / Garanhuns, PE - 2000.

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