sábado, 19 de agosto de 2023

Prefácio do Livro 'Memórias de Amor' de Gerusa Souto Malheiros

Waldemir Miranda

Em "Memórias de Amor"  todos saem engrandecidos: a autora, a família pernambucana e a vida política do Estado.

A autora, como expressão literária do seu imenso amor filial; a família pelo exemplo dignificante de um lar de "belle époque"; e a  vida política na postura de um líder parlamentar (Souto Filho) que a representou para orgulho nosso, tanto pernambucano como brasileiro.

Assim por duas vezes na história republicana a voz da democracia, acima das injunções, se fez ouvir. Da primeira vez, na Câmara Federal, negou apoio à depuração dos representantes eleitos da  Paraíba ao tempo do governo Washington Luiz. Assinale-se: o único voto da bancada governista de Pernambuco em contrário à cassação. E, em segundo plano, como deputado estadual, foi uma voz solidária em aparte à defesa do deputado Carlos Rios, envolventemente acusado no episódio da Intentona Comunista de 1935.

Só isso bastaria para definir o homem maior do que a servidão partidária. Via-se nele, acima de tudo, um servidor da Justiça (antigo procurador geral de órfãos e interdictos) que a política não  destroçou. Daí o seu espírito de conciliação ante desafios pessoas que  poderiam levar a paixões coletivas de que, apesar disso, foi alvo como líder do governo de Pernambuco, quando da revolução aliancista de 1930.

Nessa ocasião, além de feito prisioneiro, teve sua casa invadida e danificada pela multidão em delírio eventual. Duplo delírio porque, além do mais, o político visado não habitava a casa, então alugada a um amigo português. Infelizmente, nem a bandeira de Portugal hasteada pelo inquilino à janela, evitou a ação predatória dos mais exaltados.

A prisão, por sua vez, também não abalou o ânimo do político vencido. Da prisão escreveu à esposa aflita, essa admirável Dona Chiquita, em 1931:

"Não me mandes mais nada (...) Recomendo-te toda resignação que te pode dar tua fé cristã (...) Não deves pedir a ninguém pela minha liberdade".

Eis o homem: como chefe de um lar feliz, votou coerentemente contra a lei do divórcio na Constituinte de 1934. E, na família, lição paradigmática de amor, dedicação e dignidade. Lição conjunta de que era símbolo a esposa, também líder da família e dos  seus próprios dons, quase divinos entre os mortais.

Não admira, portanto, que a autora ao recordar sua infância o fizesse em dois períodos: antes e depois de papai. Depois do  papai - tão cedo da vida levado - os tempos de mamãe. Tempos de amor transbordando no lar bem estruturado. Do pai lhe vem a recordação do seu modo de ser literalmente político, sem deixar de  pertencer à família. Admirável senso do homem familiar que também sabe servir ao Estado. O amor e a política na casa habitada: no  porão o gabinete de reuniões do chefe garanhuense; no andar acima a família confraternizando. E a filha memorialista confessa: " Frequentemente descia até o porão onde Papai tinha o seu gabinete e recebia todas as manhãs os seus correligionários". Com eles, diga-se, confraternizavam todos da casa. Era o convívio da inteligência e da efetividade sobrepujando tricas de homens desavindos partidariamente. Nisso talvez o segredo de sua permanência política ao longo dos vinte e cinco anos de chefia em Garanhuns.

E de tal modo se houve, que foi o único adversário da nova ordem, eleito representante de Pernambuco à Constituinte de 1934.

Permanência política que hoje se alonga no depoimento da  filha memorialista, reconhecia ao seu amor, e admiradora do homem que no pai se engrandece: "Honrado ao extremo, até ao exagero. (...) Meu pai era um telúrico: amou profundamente sua gente, sua terra, suas raízes". Raízes do mais famoso recanto de Garanhuns, o antigo Sítio Mochila, de onde vieram grandes vocações humanas: os Gueiros, os Barros, os Rodrigues, os Vaz da Costa, os Vilelas e os Paes, além do seu representante político, e deputado Souto Filho.

Dele disse Elpídio Branco, também de Garanhuns: "Eu o considerava o meu segundo pai. Éramos assim como irmãos em que o mais velho enfeixasse o poder paterno". Acrescentando: "Nunca fui ao cemitério de Santo Amaro para não rezar ao pé do seu túmulo".

Ademais, como não podia ser de outro modo, por traz desse político a grandeza vertical de sua estrela - guia - a própria mulher, de quem ainda não se disse tudo porque é impossível beber a  última gota dessa fonte de bondade, reflexão e amor que foi para ele e os filhos o exemplo de sua vida esposa-mãe e mão-viúva.

Dela registra Nilo Pereira quando do seu falecimento: "Morta dava-me a impressão de ainda dizer alguma coisa - assim como a  despedida de uma época que ela encarnou: a fidalguia de antigos tempos que ela representava com tanta nobreza".

Hoje, mais do que nunca, vida perdurável no texto amoroso de sua filha Gerusa, saudosamente feliz na companhia das recordações felizes de sua infância.

Waldemir Miranda (foto)

Presidente da Academia Pernambucana de Letras

Créditos da foto: http://www.fernandomachado.blog.br/

*Gerusa Souto Malheiros, filha de Antônio Souto Filho (Soutinho).

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