sábado, 19 de agosto de 2023

O Pioneiro João Tude

Luiz Souto Dourado

Luiz Souto Dourado*

Ser pioneiro, tendo êxito na própria iniciativa, é difícil mesmo é ser pioneiro quando se nasce pobre e no Nordeste. Como Delmiro Gouveia que começou vendendo peles de cabra e morreu vítima do capital estrangeiro, quase sempre espoliador. Como os Brito, de Pesqueira, que começaram com um  tacho e daí partiram para uma indústria modelar de doces. Como os Alimonda, que também começaram com um tacho, demonstrando onde pode chegar o trabalho bem orientado e criterioso. Como os Tavares Correia, de Garanhuns, que começaram com um hotel sanatório, acreditando nas excepcionais condições climáticas da cidade. Como, com igual tenacidade e esforço, começou com um ônibus velho, também em Garanhuns, um rapaz chamado João Tude de Melo.

Ainda lembro do começo de João Tude, numa oficina modesta, sujo de óleo, revisando a seu único carro, que não podia parar. Teria de prosseguir viagem no dia seguinte pelos caminhos ásperos das antigas estradas sem pavimentação. Cada viagem era um risco, um desafio a enfrentar. Menino pobre do Nordeste, João mal pudera frequentar direito a escola. Por assim dizer, o volante foi o seu livro, o motor a sua engenharia que não pudera cursar.

Certo dia, quando acidentou-se na garagem, de sua casa, fui visitá-lo. O motor que para ele não tinha segredos, fizera-lhe uma traição. Até parecia a história do aprendiz do mágico. Ele, um mecânico de alta competência, era vítima da própria mágica, ou seja, do próprio motor. Mas não se abatera. Sentado numa cadeira de rodas, com Carmen ao lado, como sempre a tivera, comandava tudo, como se nada tivesse acontecido. Era o mesmo rapaz sujo de óleo, que vira há tanto tempo, revisando o seu único carro.

Pensando bem, a "sopa" de João Tude não transportava apenas passageiros. O trem era vagaroso e nele passava-se o dia inteiro viajando. Às vezes, portanto, tinha-se de recorrer aos préstimos da "sopa" para o recado, para a encomenda que não podia demorar, para o remédio de maior urgência. Lembro-me que por seu intermédio recebi do meu pai o dinheiro para matricular-me na Faculdade de Direito, depois do vestibular. Também com a chegada dos jornais, o mundo parece ter ficado mais perto, com as notícias chegando mais cedo. A "sopa" prestava um serviço de utilidade pública só comparável com o da televisão. Hoje no ônibus da "Progresso" uma pessoa vem de Garanhuns fazer compras e pode voltar no mesmo dia para casa, na maior tranquilidade. Mas ninguém pode esquecer de quem ajudou a encurtar as distâncias, com um trabalho pioneiro, foi João Tude de Melo.

Estivemos juntos e felizes em fevereiro de 1969, quando se inaugurava o trecho São Caetano/Garanhuns. O seu nome foi lembrado e enaltecido pelos oradores, que não esqueceram que a "sopa" solitário desbravara aquele mesmo caminho em 1934. Agora, uma frota de ônibus da empresa João Tude trazia os convidados numa estrada pavimentada, evidentemente em menos de doze horas, tempo gasto pela antiga "sopa" na viagem Recife/Garanhuns.

Logo depois, quando inauguramos a "Estação Rodoviária Aloísio Souto Pinto", foi a empresa "Progresso" a pioneira a ocupá-la. Naquela altura, João Tude já não era o mecânico do seu único carro. Era o empresário bem sucedido de várias linhas de transporte. Mas sem nunca ter sofrido de vertigem das alturas, sempre com os pés no chão. Soube crescer com humildade. Fez grande a sua empresa, podemos dizer, com a próprias mãos. Não lhe seduz outros negócios com outros Estados. Preferiu ficar aqui. Acostumara-se com os nossos caminhos outrora ermos, onde sabia parar a qualquer hora para consertar o freio ou o farol da sua velha "sopa". As luzes dos outros carros, de outros lugares, por mais cintilantes que fossem, não conseguiam ofuscar os olhos daquele rapaz modesto e empreendedor, cuja morte há pouco, Pernambuco tanto lamenta.

*Ex-prefeito de Garanhuns, deputado estadual e escritor. / Recife, 06 de junho de 1981.

Foto: Luiz Souto Dourado.

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