quarta-feira, 23 de agosto de 2023

A seca no Sítio Capoeira dos Garcia em 1994

A seca no Sítio Capoeira dos Garcia em 1994

Revista Globo Rural
Fevereiro de 1994

Sítio Capoeira dos Garcia, Águas Belas - PE, 450 quilômetros de Recife. Dona Rosália da Conceição, uma sertaneja  de 53 anos, serve o almoço à família de nove pessoas. Hoje, como ontem e amanhã, o prato não muda. O cardápio oficial do sertão faminto é o fubá - com acentuação sertaneja na primeira vogal. O "fubá",  que vem recoberto com um pouco de feijão, nada mais é que farinha de milho cozida com água e sal. Pronta, forma uma  massa amarela e insossa que alguns arriscam chamar de cuscuz. O preço, inferior até mesmo ao da farinha de mandioca , transformou o fubá de milho em fonte quase exclusiva de alimentação durante a seca. A dieta pobre disseminou no sertão uma doença típica da Idade Média: a pelagra, um termômetro de desnutrição generalizada que até setembro já havia ressurgido em mais de duas centenas de municípios nordestinos.

O neto mais novo de dona Rosália, uma criança de 1 ano, sem forças para se mover ou chorar, apresenta todos os  sintomas da moléstia. A pele descamada como de cobra, o corpo febril, diarreia, vômitos. "O médico mandou mudar a alimentação", diz a avó, que cerra os lábios com força. É aí que aquele arcabouço frágil de sertaneja revela de  onde tirou forças para liderar, há dois  meses, uma tentativa frustrada de saque ao comércio de Águas Belas, 30 quilômetros distante de Capoeira dos Garcia. "Você passa dome um, dois, três meses. Vê sua gente se acabar. Um dia  acha que tem mais algum direito além de morrer comendo "fubá", diz ela.

A família de Rosália vive numa  gleba não superior a 5 hectares. Uma paisagem bíblica, nua, ressequida, que não faz qualquer concessão à vida vegetal. Um ponto perdido no imenso semiárido nordestino, que reúne 1,2 milhão de quilômetros quadrados (80% da região) e 12 milhões de sobreviventes. Aqui, 9% das propriedades concentram 73% das terras e 1,6 milhão de pequenos produtores têm menos de 10 hectares cada - 95% deles jamais usaram adubo químico ou mecanização agrícola. A seca impõe uma vertiginosa transparência a esse mundo feito de peles gretadas, chão rachado, "fubá" e desequilíbrios sociais tão sufocantes quanto os últimos 700 dias e 700 noites sem uma gota de chuva.

A seca vem sempre dos oeste. Prenuncia-se no alto sertão, avança rumo a leste e desidrata o mundo por onde passa. Gente, bicho, rio, árvore, terra - nada resiste à ação contínua e combinada de sol e  miséria. Desta vez nem o Agreste temperado escapou. Os rios secaram no alto da serra do maciço de Garanhuns para confirmar a profecia: anos terminados em 1, 2 e 3 amargam escassez. Hoje, atribui-se o fenômeno cíclico decenal aos efeitos climáticos do El Niño. O fato é que os dois últimos invernos - estação das chuvas no sertão - fracassaram. E com eles, duas safras e duas parições se perderam. A fome, recolhida, desembestou então pela caatinga mostrando seus olhos esbugalhados de luz.

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