segunda-feira, 14 de agosto de 2023

A Festa da Farinhada

Josafá Paz Bezerra

Josafá Paz Bezerra

Primeiras chuvas do inverno, no município de Garanhuns, PE, mais especificamente no Sítio Mimoso, se plantavam muitos roçados de mandioca. Era também o momento adequado e preciso para puxar facilmente esse tubérculo da terra arenosa e fértil, onde tinham sido plantadas as manivas, ou caule, de mandiocas maduras.

Lembro-me bem, ainda criança, ao cantar dos galos, e do cacarejar das galinhas, acordávamos pela madrugada, dia  clareando como o sol nascendo fraco do nascente, e uma garoa insistente e fria a cair. Tomávamos nosso café (cuscuz com ovos e café com leite) e esperávamos o meu  padrinho Apolônio terminar de tirar o leite das vacas, poucas, porém bem leiteiras, que enchiam dois tonéis de leite que eram trazidos pelo carro do leite, para entregar na Cilpe, empresa de processamento de leite da região.

Ele chegava, tomava o café, juntava os quatro bois de carro (mimoso, corisco, azulão e vermelho) e os colocava em cangas, e os  conectava aos dois carros de boi existentes, já fechados com tábuas para ir buscar as mandiocas no roçado, as que no dia anterior tinham sido objeto do arranquio e estavam no campo à espera do trato final.

Este último trato era separá-las do caule dos pés de mandioca.

Os adultos, com facas grandes, iam separando as mandiocas, e nós, crianças e adolescentes, jogando-as dentro dos carros de boi até enchê-los. Após essa tarefa, íamos acompanhando os carros de boi, cujas rodas gemiam a se escutar à longa distância: nheemmm!... Até a casa de farinha. O meu padrinho Apolônio, e seu filho Francisco, eram os carreiros a conduzir os bois, tendo como instrumento de persuasão dos animais uma vara com um prego na ponta (ferrão) e um chicote, para, em caso de desvio de caminho, eles os açoitarem ou os furarem, para pegar o prumo correto da casa de farinha.

Chegando à casa de farinha, descarregávamos toda a mandioca e voltávamos para fazer outra colheita.

Quando chegávamos ao local da coleta, os adultos já estavam replantando a mandioca, que consistia em pegar o caule, cortar em pedaços, e, enquanto uma ia fazendo covas à frente com a enxada, outro ia logo em seguida colocando dois pedaços (manivas) e enterrando com ajuda do pé. Com poucos dias, a terra arenosa, molhada e fértil fazia brotar novas plantas para a colheita do ano vindouro.

Novo enchimento de mandioca nos carros de boi, e assim se repetia umas 4 vezes. 

Posta toda mandioca na casa de farinha, vinha o trabalho da industrialização, cujos instrumentos arcaicos, todos em madeiras, já tinham sido reparados nos dias anteriores pelos  farinheiros (prensa, forno, máquina de raspar a  mandioca).

Na chegada à casa de farinha, já ouvíamos as mulheres cantando cantigas da época, que assim se desenrolavam:

"Oh, moça namoradeira!

Namoradeira,

nessa ribeira todo mundo ama ela,

olhei pra ela

fiz ar de riso

é proibido eu não me casar com ela."

"Ela tem cheiro da flor da floresta,

É uma festa o olhar dessa mulher"...

Uma festa, um só ânimo, um propósito: fazer farinha.

Depois de "cevada"  a mandioca, em caititu de lâminas afiadas, as raízes viravam pasta. Essa pasta era levada para uma prensa, também feita em madeira, que era apertada por dois homens, rodando uma barra de madeira na  extremidade superior, e o pivô que era feito um  parafuso ia direcionando para baixo, uma base de madeira grossa e forte que imprensava a pasta da mandioca com muita força, fazendo escorrer toda a sua água, que corria numa canaleta, também de madeira, para se depositar em  umas gamelas de madeira, e ali ficava em processo de decantação, da qual se retirava outro subproduto desse processo de fabricação da farinha, que era a goma de tapioca, ou como chamávamos, a massa puba.

Agora, era levada ao forno redondo. O forno era de tijolos, e embaixo da estrutura, lenha em chamas elevavam a temperatura do forno e do ambiente. Terminado todo o processo, os trabalhadores recebiam sua paga em sacas de farinha, e o restante meu padrinho carregava de volta a sua casa, nos carros de boi, para  vender, ou trocar por outros produtos, na feira de Garanhuns.

Voltando para casa, já noitinha, a lua e  as estrelas já a nos espiar, era momento divertido para nós, crianças e adolescentes, que vínhamos sentados nos sacos de farinha, ouvindo aquelas canções antigas e harmoniosas, cantadas pelas mulheres, ao coro do ranger das rodas dos carros de boi: nhemm!... E à frente, incansáveis, estavam os bondosos bois, mimoso, corisco, azulão e vermelho.

E assim chegava, cansado, porém muito satisfeito com o dia da Festa da Farinhada. (11 de março de 2022 - Texto transcrito da Revista Cultural O Século - Maio de 2022).

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