terça-feira, 22 de agosto de 2023

A Casa e a Cruz

Garanhuns, PE - Mosteiro de São Bento em 1954

Luiz Souto Dourado*

Aquela casa, cercada de eucaliptos, isolada e no alto de um grande terreno, sempre exerceu uma certa fascinação aos meus olhos de menino. Principalmente no inverno, quando a garoa aumentava a escuridão, emprestando-lhe um aspecto de mistério, solidão e paz, que vira parecido apenas em cartões de Natal, mostrando paisagens da Europa. Era ali que morava Dom Moura, o primeiro bispo de Garanhuns.

Depois, a velha casa serviu para abrigar os beneditinos que chegaram em 1940 para fundar o Mosteiro, conforme depoimento de Dom Gerardo Wanderley (Monitor, abril de 1980). Foi demolida em 1946 e dois anos mais tarde estava pronta a nova construção, projetada por Otávio Tavares e Hélio Feijó.

Fundava-se, pois, o Mosteiro em Garanhuns justamente no ano em que eu vinha para o Recife, continuar os estudos. Nosso convívio, portanto, restringia-se aos períodos de férias.

Dos monges, Dom Gerardo Martins foi um dos primeiros a chegar a Garanhuns, vindo do Mosteiro do Rio de Janeiro. Temperamento artístico, conseguiu que o seu sobrinho, Eros Martins Gonçalves, pintasse um excelente mural na Cripta, ainda hoje uma atração para os visitantes. Durante o tempo em que passou em Garanhuns, Dom Gerardo conseguiu atrair jovens, principalmente aqueles que gostavam de ler e pretendiam escrever. Gasparino da Mata foi um deles. E a convivência no  Mosteiro foi descrita no seu primeiro livro - "Queda em Ascensão" - sendo alguns capítulos escritos no próprio Mosteiro. Quando o Centro Cultural estava para ser inaugurado, procurei Dom Gerardo na Igreja dos Pretos, onde mantém uma Galeria de Arte, e ele com a sua influência realizou uma exposição de quadros, juntando os nomes mais representativos da pintura na Região. Era mais um serviço que prestava a Garanhuns, onde fundara o Mosteiro e vivera alguns anos.

A minha maior convivência, no entanto, foi com Dom Jerônimo, do qual ainda hoje conservo uma fotografia, em que estamos com Eduardo Collier, Paulo Amazonas e Oscar Siqueira. Dom Jerônimo lia muito e voltara da Europa há pouco tempo. A sua influência nos jovens da época foi enorme. Começamos a pensar de um modo diferente. O Inferno deixou de ser de fogo vivo. Indagávamos, então: O Inferno seria os outros, como pensava Sartre? Seria uma saudade de Deus nunca satisfeita? Seria o peso que se carrega? Seria o caminho fechado para  a Casa de Deus? O amor passou a ser mais simples aos olhos de Dom Jerônimo. Nada de escandaloso. Nada de temeroso nada de escondido, o pecado exigia antes uma consciência do pecado.

O que liamos na época tinha a crítica, jamais a censura ou a repressão de Dom Jerônimo. A televisão ainda não chegara, mas a antevisão desse monge revelava a chegada de um mundo novo, sem os preconceitos e sem as dificuldades do nosso tempo. Não o mundo colorido e enganador que a televisão trouxe, fabricando "o homem que leva vantagem", mas o mundo que a Igreja hoje defende, o homem em desvantagem, oprimido, reprimido. E foi em plena luta por esse mundo melhor, que a morte surpreendeu Dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, em Salvado onde exercia impressionante liderança nas diversas camadas da sociedade baiana.

Ultimamente, quem dirige o Mosteiro é Dom Gerardo Wanderley. Acompanhei de perto o seu trabalho em favor do menor excepcional. Um penoso, paciente e admirável trabalho que o seu grupo realiza, obtendo uma quase ressurreição nas crianças carentes da sua escolinha. Admirável também foi o seu esforço como diretor do Centro Cultural, incentivando vocações locais e ajudando a trazer a Garanhuns as melhores Companhias e alguns dos mais aplaudidos artistas do País.

A velha casa que outrora me parecera um tanto misteriosa na sua solidão, transformou-se. Hoje, mesmo no inverno, mesmo envolvida pela garoa, é uma bela e acolhedora casa de tijolos aparentes, com uma grande cruz branca, iluminando os seus caminhos e iluminando quem para ela caminha.

*Escritor, ex-prefeito de Garanhuns e deputado estadual / Recife, 24 de Abril de 1982.

Foto: Garanhuns, PE - Mosteiro de São Bento em 1954.

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