terça-feira, 22 de agosto de 2023

Memórias da Família Gueiros: Parte V


David Gueiros Vieira*

Águas Belas cidade do agreste pernambucano. Seu nome  deriva, pelo menos esta é a lenda, da fontes de águas  minerais límpidas e deliciosas encontradas na região.

A cidade de Águas Belas foi fundada por João Rodrigues Cardoso, cerca de 1756. Naquele ano, João Cardoso recebera  incumbência do governador de Pernambuco de reunir em um só local todas as tribos carnijós de "Lagoa do Comunabi e da Ribeira do Panema", assim rezava o documento de sua nomeação. Esses índios carnijós são hoje denominados "fulniôs", e ainda vivem em uma reserva municipal - uma espécie de gueto - dentro da própria cidade de Águas Belas. Típico dos "protetores dos índios" daquela época, esses defensores dos carnijós se apoderaram das terras dos próprios protegidos, sem a menor cerimônia.

João Rodrigues Cardoso originariamente de Santo Antão da Mata, hoje vitória de Santo Antão, cidade a poucos quilômetros do Recife, onde os holandeses tinham sofrido fragorosa derrota. Afirma Sanelva de Vasconcelos que João Cardoso era "neto de uma nobre portuguesa", sem, no entanto, indicar o nome dessa senhora, dona de tanta nobreza. Como já visto, em capítulo anterior, sabe-se que o fundador de Águas Belas era descendente do primeiro ouvidor-geral da capitania de Pernambuco, Simão Rodrigues Cardoso, de quem herdara o sobrenome.

Á época de sua mudança de Santo Antão da Mata para Águas Belas, João Rodrigues Cardoso já era casado com Cosma Maria da Paixão. Tinham três filhos, o primeiro dos quais, João Rodrigues Cardoso Filho, nascera em 1745. O casal mudou-se para Águas Belas, e  lá deixou numerosa descendência, a qual Sanelva de Vasconcelos, com bastante cuidado, registrou no seu já mencionado livro, intitulado Os Cardosos de Águas Belas. Muitos dos seus descendentes atingiram posições de muita distinção, no Estado e no país.

Essa mudança de toda uma família de ascendência nobre para os sertões fazia parte da procura de terras na Colônia de Pernambuco,  uma vez que todas as terras ao longo da costa, e na zona da mata,  já tinham sido tomadas. "Sertões, como definido aqui, quer dizer "interior". Era um termo utilizado para definir todo o espaço geográfico além do espaço costeiro. Bem mais tarde, já no  século XIX, Joaquim Nabuco ainda chamava de "sertão" a cidade de Escada, localizada apenas a 50 quilômetros do Recife. Assim, a definição hoje convencionada dividindo o Nordeste em zonas: da mata, do agreste e do sertão, não faria sentido naquela época. Tudo era "sertão", num sentido, talvez, semelhante ao termo norte-americano "frontier", querendo dizer a fronteira entre as terras ocupadas e as ainda disponíveis para serem ocupadas.

Havia fome de terras. Colonos portugueses, acostumados à ideia de que terra representava mais do que uma área de plantio, estando mais ligado ao de  conceito medieval de "senhorio", buscavam de toda maneira serem donos de terra, muitas terras. Ser "nobre" queria dizer ter poder. Ter poder queria dizer ter o senhorio sobre todo o território específico. Daí a expressão ainda hoje utilizada no  Nordeste para definir os donos de propriedade de açúcar, herdeiros culturais dos primeiros senhores de terras: "senhor de engenho". Já  os donos de usina de açúcar, uma instituição industrial mais moderna, são simplesmente chamados de "donos de usina". O conceito de senhorio era um medievalismo português tardio, em terras brasileiras, como já observou o sociólogo Francisco Pernambucano de Mello, em busca de uma definição daquele momento histórico.

Francisco Pernambuco estudando esse fenômeno define-o como algo "tardiamente medieval". Sem dúvida, aqueles que se  embrenhavam nas matas e nos sertões do Brasil colonial, buscavam para si feudos à moda medieval, onde tinham poder sobre a vida dos  escravos africanos e até mesmo sobre a vida de seus familiares. O  fluxo de penetração em Pernambuco, afirma esse autor, foi  interrompido "menos de 100 anos após o seu início", dando lugar a um "isolamento das populações já assentadas, empobrecidas a ponto de não se animarem a voltar para o litoral". Essa é sem dúvida uma boa definição das populações da caatinga e do alto sertão, não se aplicando, porém, a toda a região definida como "sertão" naquela época, incluindo e semiárido do Agreste, com suas regiões férteis da Serra da Borborema, e até mesmo as áreas interioranas da Zona da Mata. O medievalismo tardio, no entanto, também ocorria nessas outras áreas do "sertão" da época colonial, especialmente em Pernambuco, onde as vias de comunicação para o interior eram escassas. Rios navegáveis existiam apenas na região da mata. Destarte, o governo da colônia de Pernambuco conseguira penetrar e controlar apenas até a região de Bezerros. Daí para frente, as vias de comunicação estendiam-se em direção do rio São Francisco, sob o controle da Bahia, de modo que cartorial e administrativamente essas terras eram de facto parte da Bahia, ainda que de jure pertencessem a Pernambuco. As propriedades naquelas regiões interioranas eram registradas nos cartórios de Sergipe e Bahia, mais accessíveis do que os do Recife.

Nas outras regiões do interior, da mata e do agreste, também ocorreu aquilo que Francisco Pernambucano de Mello descreve, a respeito da caatinga e dos sertões: um asselvajamento da população, "por uma guerra longa e surda contra os índios", bem como contra a natureza hostil. É dentro desse contexto que se deve entender a ocupação das terras de Garanhuns, de Águas Belas e de Buíque, onde a família Gueiros se localizou. A luta da parte deles foi contra os africanos fugidos da escravidão, bem como contra os índios caetés e outros encontrados naquela região. No entanto, deve-se observar que a definição do mencionado sociólogo é válida apenas até certo ponto, no que se refere a Garanhuns, Águas Belas e Buique, visto que desde cedo os Cardosos de Águas Belas, os mochileiros de Garanhuns e seus descendentes, após um hiato de 100 anos, "voltaram à costa" na expressão do mencionado autor, e efetivamente participaram da vida nacional, na jurisprudência, na política e nas letras.

Evidentemente, os Cardosos não foram os primeiros brancos a chegar à região das Águas Belas, pois desde 28 de maio de 1727 um certo capitão do terço da guarda do recife, Manoel Marques, obtivera de "D. Manoel Rollim de Moura do Conselho de S. M. e Capitão Geral de Pernambuco e mais capitanias anexas e etc. (sic)" uma sesmaria de "três léguas em quadro", na região da lagoa do Jacaré, confrontando o rio Panema. Marques foi outro sobrenome encontrado na relação dos águasbelenses aparentados com os Cardosos, através de vários matrimônios.

Inúmeros outros personagens constam da genealogia dos Cardosos, preparada por Sanelva de Vasconcelos, muitos realmente meritórios de menção, caso houvesse suficiente espaço neste capítulo. Entre outros, encontra-se o coronel José Ramos de Vasconcelos, bisneto de João Rodrigues Cardoso.

Coronel José Ramos era político em Águas Belas, tendo chefiado o Partido Liberal. Proprietário de fazendas de gado era também comerciante e professor de primeiras letras, tendo educado toda a parentela de sua época, residente em Águas Belas. "Homem de  maneiras polidas e justo no seu tratamento de todos", tendo se  cansado da violência sertaneja, e com a proclamação da República repudiou a política e foi buscar refúgio em Palmeira dos Índios, Alagoas, no seio da família Ramos (Vasconcelos, 1962).

Dessa família alagoana, de nome Ramos, estabelecida em Quebrangulo, Palmeira dos Índios e outras cidades daquele Estado, saiu o escritor Graciliano Ramos. Um irmão de Graciliano, de nome José Ramos, foi amigo e companheiro de jogos de voleibol do meu pai, Aggeu Vieira da Silva, quando este foi pastor da Igreja Presbiteriana de Palmeira dos Índios, entre 1940 e 1942.

A ida do coronel José Ramos de Vasconcelos para Palmeira dos Índios é aqui mencionado, por ter havido uma grande relação entre os Ramos de Vasconcelos de Alagoas e os Cardosos de Águas Belas. Essa ligação com os Ramos alagoanos foi mantida por inúmeros outros descendentes de João Rodrigues Cardoso, através de vários casamentos, relacionados no trabalho de Sanelva de Vasconcelos.

Mais ainda, na década de 1930, o ministro Esdras da Silva Gueiros, quando ainda muito jovem e praticando odontologia em  Maceió, fez amizade como escritor Graciliano Ramos, de Palmeira dos Índios. Ambos, na época, se envolveram como o movimento comunista alagoano.

Outros descendentes de João Rodrigues Cardoso se estabeleceram em Alagoas. Esse Estado convém lembrar fora parte de Pernambuco, até a revolução de 1817, tendo sido desmembrado por D. João VI, como punição pela rebeldia dos pernambucanos. Os antigos pernambucanos inconformados com a separação de Alagoas, chamavam aquele Estado de "uma filha ilegítima, gerada de um estupro político".

Sanelva de Vasconcelos infelizmente não traçou o roteiro de todos os Cardosos alagoanos, aparentemente por faltar-lhe informações, havendo um grande hiato no final de seu livro, com escassos e incompletos nomes aparecendo entre os descendentes de João Cardoso Filho. Sabe-se, no entanto, que alguns Cardosos mudaram-se para Alagoas, tendo vários de seus descendentes se ligado à política, bem como à violência e ao cangaceirismo político.

Fonte da Pesquisa: Livro Trajetória de uma Família "A História da Família Gueiros" de David Gueiros Vieira / Editora Nossa Livraria - Primeira Edição - Julho de 2008.

Foto: Igreja Presbiteriana de Águas Belas, Pernambuco - em outubro 2003, ao lado esquerdo da igreja fica a antiga casa de João Malta e Amélia Gueiros Malta.

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