sábado, 19 de agosto de 2023

A adega

Clovis de Barros Filho*

São Paulo (SP) - Eu e meu amigo Joel tínhamos uma pequena empresa especialista em revestimentos  e restaurações de pisos. Na realidade uma micro empresa, pois nossa clientela era muita pequena e dispúnhamos somente de um ajudante que fazia o trabalho mais pesado. Naquele ano, final de 90 a economia estava deteriorada, os negócios não prosperavam e aquilo para nosso azar nos atingia em cheio. Estávamos mesmo a ponto de fechar por falta de serviços. Para nossa sorte, naquela manhã de setembro início da primavera recebemos um telefonema de uma senhora que se dizia empregada de um senhor o qual necessitava dos nossos serviços para uma possível restauração de um piso na sua propriedade. Inicialmente nos explicou que tratava-se de um pequeno espaço, uma espécie de coreto cujo piso todo formado de pedras portuguesas precisava de urgente manutenção pois há anos estava se  deteriorando. Marcamos a visita. No dia seguinte logo às oito da manhã chegamos ao local. Uma propriedade muito bonita, num lugar ermo fora da cidade. Parecia uma chácara muito grande, cujo casarão que mais parecia um castelo se destacava na densa vegetação cercada por ipês, jatobás, muitos ciprestes, araucárias nativas, além de coloridas bromélias e verdes samambaias. Um pequeno paraíso.

Tocamos a pequena sineta de bronze cujo tilintar se fez ouvir muito além dali. Não demorou, e lá distante uns cinquenta metros do portão principal, apareceu a figura daquela que julgamos ser a mulher que nos telefonara no dia anterior. Veio nos atender. E acompanhando-a dois enormes cães negros a dar-lhe proteção. Há uma ordem sua, porém, os cães logo se acalmaram e nos deixaram entrar sem problemas. O casarão era enorme. Sua sala principal era ampla, decorada com quadros antigos, estátuas da idade média e o chão forrado por coloridos tapetes persas, do seu teto pendiam brilhantes lustres de quartzo branco e rosa. Duas enormes escadas todas revestidas em mármore ladeavam a sala e levavam ao que acreditamos ser os aposentos da casa. Ou seja, uma casa que mais se assemelhava há um pequeno castelo medieval. A mulher pediu que aguardássemos sentados a uma mesa grande de madeira de lei em cujos lados havia bonitos candelabros. Não demorou e o proprietário apareceu. Um senhor baixinho, magro, de nariz afilado e olhos azuis de um brilho profundo, aparentando ter uns 80 anos e cujos restos do que parecia ter sido uma vasta cabeleira pendia-lhe dos lados. Nos cumprimentou rapidamente e sem perda de tempo nos levou ao lugar onde seria realizado a pequena obra de restauração. O local ficava a uns cem metros do casarão. Era realmente um espécie de coreto todo cercado por grades bem trabalhadas em ferro representando ramos de flores. O teto era também todo de ferro pintado com tinta branca já desgastada pelo tempo coberto por multi-coloridas flores de primavera. No centro, havia uma mesa de mármore e cadeiras também de ferro fundido e pintadas que adornavam o ambiente. O piso era muito bonito mais estava muito deteriorado. Muitas pedras soltas, algumas quebradas e muitas desgastadas. Pela vistoria que fizemos o o trabalhos não seria muito difícil. 

O senhor Grubber, Hans Grubber como se chamava mostrou-se muito contente quando lhe falamos que tudo poderia ser resolvido sem grandes problemas. Acertamos os detalhes, combinamos o preço e falamos que na manhã seguinte começaríamos o trabalho. Antes de nos despedirmos e já de volta ao casarão e senhor Grubber nos ofereceu um taça de vinho. Joel não bebia e preferiu água. Eu adorei, pois era um enófilo de primeiro grau. Um enófilo, mais de vinhos desses de supermercado não daquele que o velho nos ofereceu e tive o prazer de degustar. O senhor abriu um garrafa de legítimo vinho francês. Fiquei quase sem palavras. Um vinho daqueles deveria se caríssimo e o nosso cliente abria a garrafa como se fora uma aguardente qualquer. E o vinho era mesmo espetacular. O seu aroma maravilhoso. O paladar de tirar o fôlego. Após aquela surpresa causada pelo vinho voltamos para casa e nos preparamos para o começo da obra no dia seguinte. 

Naquela noite não consegui deixar de pensar no gesto do nosso cliente e muito menos no que tinha nos oferecido, aquele maravilhoso vinho francês. Aquilo ficou  martelando minha cabeça. Quantas garrafas mais esse senhor não deveria ter na sua adega? E quais outros vinhos melhores ainda não poderia ter? Um desejo enorme começou a tomar conta de mim. Como gostaria de conhecer a adega do senhor Grubber. Bem, chegamos lá no casarão como prometido logo cedo da manhã. Eu, Joel e nosso ajudante Laurindo. Levamos todo material na nossa velha kombi. Primeiro, tratamos de remover todo piso do local mesmo aquele que ainda não estava solto. Laurindo cuidava dessa parte. Eu e  o Joel separando  os que estavam quebrados daqueles desgastados e dos ainda estavam intactos. E isso tomou todo dia. Na pausa para o nosso almoço descansávamos a sombra de um imenso flamboiant quando percebemos a mulher que sem dúvidas era uma das empregados do velho ir em direção a uma velha capela que até então não tínhamos percebido. A capela era bem velha mesmo parecia abandonada, mais  bem cuidada e pelo que raciocinamos deveria ser utilizada para as celebrações da família há muito tempo e havia nos arredores algumas lápides muito velhas indicando que aquela área era usada também com cemitério particular da família . Nem Joel e muito menos Laurindo perceberam o que vi. A mulher, a governanta abriu a porta da capela e não demorou mais que cinco minutos, saindo de lá com um objeto nas mãos que devido à distância não pude identificar o que era. 

O dia de trabalho acabou com tudo pronto para reiniciarmos no dia seguinte já com a restauração das peças. Joel era muito bom nesse serviço. Tinha aprendido com o velho pai que trabalhava recuperando objetos e imagens sacras nas igrejas da região. Laurindo, se dedicava  lavagem das peças e eu inspecionando tudo com cuidado. Mais uma vez paramos para o nosso almoço debaixo da sombra do flamboiant. E para minha surpresa, na mesma hora do dia anterior vi a senhora se aproximar da velha capela, ficar lá por alguns minutos e sair levando consigo um objeto, que mais uma vez não pude reconhecer. Aquilo definitivamente me deixou curioso. Não deveria ficar, mais fiquei. O que me interessava aquilo que a senhora fazia ou deixava de fazer na velha capela? Mais o certo é que fiquei curioso e o mais incrível, resolvi que iria bisbilhotar. 

No dia seguinte, próximo a hora do almoço, falei para o pessoal que iria dar uma volta no lugar. Não contei nada para eles a respeito das minhas intenções e lá fui eu. A velha capela era toda rodeada por uma vegetação cujas árvores eram de pequeno porte quase toda composta por alamandas, jasmins e manacás a exceção era que ficava bem embaixo de uma gigantesca paineira que lhe proporcionava uma sombra quase perene. O lugar era muito bem protegido do sol. Pelo horário que calculei já estava quase na hora da senhora chegar ao local. E não decepcionou. Protegido pela vegetação percebi a sua chegada. Ela imediatamente tirou uma chave que carregava no bolso do seu avental branco, abriu a porta da capela deixando a chave na fechadura e lá ficou por aproximadamente cinco minutos. Quando voltou, percebi o que era o misterioso objeto que levava às mãos. Tratava-se para meu espanto e alegria de uma garrafa de vinho. Com o seu ritual de sempre, fechou a porta tirou a chave e voltou apressada. Matei a charada na hora. Ali na velha capela, era onde se escondia a adega milionária do senhor Grubber. Não pensei nem um minuto a mais. Decidi que teria que explorar aquele local. Estava decidido a conhecer a adega que se escondia na velha capela daquele casarão.

Para levar o plano em frente, era necessário ajuda dos meus companheiros e para isso contei o que tinha acontecido, e as minhas intenções. Eles ficaram todos surpresos e preocupados com a minha ideia. Mais não houve jeito de me convencerem do contrário. Falei que iria dar um jeito de entrar naquela capela e descobrir o que ela de fato escondia. O plano foi bem engenhoso, mais arriscado. Planejei tirar uma cópia da chave da capela enquanto a governanta permanecia lá dentro. Era arriscado, pois ela poderia retornar mais cedo do que de costume ou até levar a chave consigo e ai eu estaria em maus lençóis. Mais foi o que fiz. No dia seguinte a mesma hora, me escondi entre os arbustos. No horário de sempre como um relógio a governanta apareceu. Eu me encontrava bem próximo talvez não mais que cinco metros. Ela repetiu tudo como percebera antes. Retirou a chave do bolso e para minha sorte deixou a mesma na fechadura e entrou na capela. Como um gato, corri até a porta retirei a chave da fechadura e pressionei a mesma contra uma massa moldante que tinha levado. Pronto. Estava lá o meu passaporte para a misteriosa capela e a velha e quem sabe milionária adega. Rapidamente me afastei e voltei a me esconder. Não mais que dois minutos se passaram e a corpulenta mulher voltou trazendo às mãos mais uma bela garrafa do precioso vinho.

A obra de restauração avançou bastante. Todos os pisos já tinha sido separados. Os que precisavam ser emendados ou repintados foram devidamente trabalhados. Os que estavam preservados foram lavados. E na semana seguinte iríamos começar a recolocá-los no lugar e terminar o serviço. Durante esses dias todos a governanta não perdeu um dia sequer. Todos os dias no mesmo horário, ia à capela e levava sempre um nova garrafa de vinho. Não queria correr o risco de adiar mais a minha ida à capela. Haveria a possibilidade de algum imprevisto. Decidi então que no dia seguinte iria tentar entrar no lugar. Planejei ir logo, após a governanta realizar a sua tarefa. Meu medo era que a chave que mandei fazer não funcionasse e perdesse meu tempo. Ou então, que por alguma razão ela mudasse o horário da ida ao local. Mais não tinha mais o que fazer e estava tudo planejado. Combinei com os dois colegar ficarem de olho para uma eventual chegada inesperada de alguém quando estivesse lá dentro. O combinado era que eles deveriam fazer algum tipo de barulho forte como por exemplo a batida de latas velhas usadas na obra, como o local era muito tranquilo certamente ouviria mesmo àquela distância. Dessa vez não tive que ficar escondido. Vi de longe quando a governanta chegou e repetiu todo ritual de sempre, até fechar a porta retirar a chave e voltar com a garrafa de vinho. Deixei pra ir ao local no final da tarde até ter certeza que ninguém mais apareceria por ali. Avisei aos amigos e lá fui eu ansioso porém muito curioso para saber o que me aguardava. Tirei a cópia da chave do bolso temendo pelo pior. Porém ao primeiro giro da chave a porta abriu facilmente. Não perdi um minuto e entrei, retirando a chave e só encostando a porta atrás de mim.

A capela era extremamente limpa e bem cuidada. O piso todo de lajotas de cerâmica tudo encerado. Os bancos de madeira de lei envernizados de preto com suporte vermelhos almofadados. Deveria haver uns dez bancos. cinco de cada lado. O altar era simples. Uma cruz de bronze apoiada sobre um altar de mármore branco. Várias imagens sacras penduradas nos dois lados, nas paredes. Um luz bruxuleante alimentada por azeite dava um aspecto bucólico e de fé ao local. A claridade que iluminava o local, era unicamente através de pequenas vidraças coloridas nas paredes. E a adega onde estaria? Procurei por alguma porta e não vi nenhuma. Fui atrás do altar e então vi uma escada que levava ao sub-solo. Ali estava ela a adega que tanto despertara a minha curiosidade. A escada em caracol se estendia para baixo da terra. Calculei uns 3 metros que para minha surpresa levava há outra porta de madeira velha e bem mais pesada e ainda por cima fechada. A sorte é que a chave dessa porta estava na fechadura. Não tive o menor trabalho em abri-la. Quando entrei vi que tudo era iluminado por outras pequenas lâmpadas de azeite colocadas ao lado nas paredes. O ar dentro da adega era muito frio e pouco úmido. Certamente o solo e a sua localização debaixo de uma grande árvore e entre arbustos foi muito bem planejado. Vinho não combina com ambientes quentes e muito menos iluminados. Quando meus olhos se adaptaram mais àquela quase escuridão fiquei extasiado com o que vi. Muitas prateleiras, centenas e centenas de garrafas de vinho de todos os tipos, os mais cobiçados  italianos passando por renomados franceses. Caixas e mais caixas ainda fechadas e cheias de pó. Centenas de garrafas de licor, champagne e espumantes além dos clássicos brancos alemães e muitos pequenos barris espalhados de rum caribenho. Cheguei  a ficar meio tonto. Jamais esperava encontrar um tesouro daqueles por ali. Antes de ir a adega me precavi e levei comigo duas coisas. A primeira um abridor de garrafa de vinho e a segunda uma taça de vidro. Claro. Por motivos óbvios. Ali naquele local frio úmido e escuro tomar um taça de vinho daquela qualidade certamente não era uma má ideia. E foi exatamente o que fiz. Nem me dei ao luxo de escolher muito. Ali no meu nariz um tinto francês de primeira linha foi o escolhido. Abri com cuidado e vagarosamente. O barulho da rolha a sair da garrafa fez um ruído que naquele ambiente equivaleu ao de uma bomba. Enchi a taça e vagarosamente levei o vinho primeiro ao nariz para sentir o seu aroma e depois aos lábios para provar o seu sabor, o seu paladar. Magnífico. Tinha valido a pena vir até aquele local. Repeti a dose. Voltei a encher a taça com o precioso líquido com calma e apreciando o seu efeito mágico em minha mente. Ao encher a taça pela terceira vez e colocar o vinho sobre uma mesinha de madeira, tive a sensação de que alguém me observava. Pensei inicialmente tratar-se dos efeitos da bebida. Porém,  duas taças de vinho não eram suficientes para me fazer enxergar fantasmas naquele local sem viva alma. Mais o fato é que a sensação permaneceu. Não tinha ido até o final da adega mesmo porque o que vira em se tratando de estoque já era mais que o suficiente para matar a minha curiosidade. Havia também o fato de que o fundo da adega era bem mais escuro, frio e úmido. E foi olhando com mais cuidado que pude perceber algo que me deixou petrificado, com os pelos eriçados, sem ação, literalmente em choque. Sentada em uma cadeira, uma mulher de cabelos compridos de pele clara como a neve vestindo um longo vestido de seda branca começou a se levantar lentamente e caminhar em minha direção. Travei literalmente, não conseguia dar um passo para trás. Ela se aproximou mais e agora podia ver seu olhar sereno mais penetrante, seus lábios vermelhos como que a sorrir para mim e ai sem que pudesse dizer uma só palavra falou: eles são muito maus nunca me ofereceram um taça de vinho e você? Não vai me oferecer uma? Ao falar percebi a alvura dos seus dentes com se fossem de marfim, porém, um frio gelado parecia emanar do seu corpo. Quando se aproximou, percebi que seus dentes eram pontiagudos e suas unhas pareciam tão compridas que nunca tinha sido jamais cortadas. Como num despertar, dei um passo para trás. Um grito gutural saiu de minha garganta enquanto desesperado procurava a porta de saída. Já do lado de fora, sem ao menos me importar de ser visto e já era tarde quase seis horas, o pessoal já preocupado com minha demora esperava na kombi. Ao me ver naquela situação ficaram mais preocupados ainda, querendo saber o que tinha acontecido. Não conseguia falar mais nada. Ao entrar na kombi e começarmos a nos dirigir para fora do casarão, ainda pude ouvir como que vindo debaixo da terra, as gargalhadas de uma mulher embriagada.

*Clovis de Barros filho nasceu na Serra da Prata (Iatecá). Estudou no Colégio Diocesano de Garanhuns do Admissão ao Científico onde concluiu em 1968. Reside em São Paulo desde 1970. É Licenciado e Bacharel em Química Industrial pela Universidade de Guarulhos e Químico Industrial Superior pelas faculdades Osvaldo Cruz - SP.

Créditos da foto: https://pt.depositphotos.com

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