João Marques* | Garanhuns
Das adversidades e alegrias de Marcos de Safo no carnaval
A fantasia é de todas as idades na Avenida. Cresce a criança, e o homem nunca acaba de sentir vontade de brincar. Ele se entrega à grande desconcentração, e se comporta como é o ar livre, como é a abertura larga do espaço. E, dentre as muitas formas de amanheceres no dia, a Avenida amanhece carnaval. Muitas cores e enfeites por toda a parte, inspirando alegria. E todo o mundo meio enlouquecido. E o carnaval se torna a brincadeira maior. As crianças, estas são as primeiras. Tomam as calçadas, brincando uma com as outras. Dançam, pulam e correm em círculos. É carnaval, é carnaval!... Jogam água umas nas outras e passam tinta na cara. Tomam a Avenida. Os adultos, em seguida, viram meninos e voltam a brincar. E criam fantasias nas roupas e em tudo. A Avenida é transformada em grande festa. As músicas, tantas, que fazem zuada. O ritmo comanda as danças e os movimentos de exibição. Quem não dança, olha. Formam-se alas ao longo das calçadas. A Avenida quer o mundo assim, de carnaval. A irreverência é característica. E rir-se muito no carnaval. A dor é esquecida momentaneamente. E todos se abraçam e se sentem felizes.
Combinei com Eloim sairmos juntos, para ver a festa de perto. Mas, para minha surpresa, veio com irmã. Vestido vermelho e curto. Colares e bijuterias por todo o canto. Um diadema na cabeça dá-lhe aparência de rainha. Helena sorri e cumprimenta-me, apertando minha mão. Fico vexado. O coração bate mais acelerado. Olho-a toda e, imediatamente, a lembrança de tê-la visto nua. Ela não sabe. Procuro demonstrar minha admiração, contemplando fixamente a sua beleza. Ela desvia a atenção para os lados, vendo o carnaval. Tento chegar perto, quase tocando-a. Ela se afasta mais. O meu carnaval, penso, é Helena. Vejo-a em todas as fantasias nas músicas, nas danças, na loucura enfim. Helena é a minha festa. Os que dançam na rua vão passando em grupos. Gozam da liberdade de fazer o que querem. As mulheres rebolam, os homens gritam. Vão e vêm. Aproximam-se e dão as mãos. Os casais se abraçam intimamente. Tenho vontade de puxar Helena, pela mão. Abraçá-la. Contenho o impulso, contudo. Eloim olha quem passa. Acena para os conhecidos. Pergunta se estou bem, admitindo que não me encontro à vontade. Não sei se nota que estou apaixonado. De repente, uma turma muito animada passa, e alguns rapazes abraçam Helena e dão as mãos a Eloim. Todos vestidos de saco, saindo a cabeça, os braços e as pernas pelos buracos feitos. Não gosto dos abraços em Helena. Gritam e rodam, cada um no seu canto.
Lembro de outros carnavais, enquanto estou ali. A Avenida cheia de alegria. Os blocos, as fanfarras, as mesmas de sempre. As pessoas entretanto, mudam. Não vejo a turma das moças, que aparecia com pouca roupa. Todas bonitas e alegres, cantando e sorrindo. Puxavam-me para o meio delas. Faziam isso, por troça. Arrodeavam-me, pulando e dançando. Gosto da festa. O comportamento humano é diferente agora. É outro mundo que se inventa de repente. E se convive, pelo menos no carnaval, a aproximação, a intimidade, como se fosse assim sempre. Helena, entretanto, não se adequa ao espírito da festa. Continua estranha para mim. Por isso, a festa não é completa, e começo a me importar com outras coisas que não fazem bem.
Nicolau chega. Não o conhecia e nem sabia que ia aparecer mais alguém. Um sujeito grosseiro de aparência, falando alto e alisando o cabelo constantemente. Helena, derretendo-se de alegria, apresenta-o a mim.
- Marcos, este é meu namorado. - e aponta para ele. O sujeito não diz nada, nem faz nenhum cumprimento. Eloim não gosta. Vejo o gesto esquisito que faz na boca. Daí, concluo ser mesmo o Nicolau do qual o meu amigo se queixa muito. Passa o braço pesado pelas costas de Helena, apoiando-o nos ombros dela. Fico desapontado completamente. Era o que faltava!... penso ironizando. Descontente, tenho o desprazer de ver Helena dando uns pulinhos na frente dele, ensaiando a dança. O namorado, de vez em quando, curva-se um pouco para olhar diretamente o rosto de Helena, em posição oposta. Olha, sorri e passa a mão nos próprios cabelos, que não são compridos. Eloim, finalmente, convida-me para sair dali.
Saímos. Vejo uns mascarados horríveis. Apresentam-se, querendo amedrontar as pessoas. Vestem preto. e de máscaras e de mão brancas. Conduzem um esqueleto humano acomodado numa caixa de vidro e comprido. E dão gargalhadas macabras. Cercam-me e ameaçam, com gestos e manobras esquisitas. Dois deles, reconheço, são dos Bacanas. Passa outro folião com máscara de vampiro, e para perto de mim. Demonstra que me conhece. Acaricia meu rosto, passa as mãos pelo meu pescoço e mostra os dentes compridos. E sai, dando gargalhadas altas. Fala com fala horrível, dizendo meu nome. Ele se diverte, eu não! O humor não está bem. Digo a Eloim que vou embora. Ele diz que vai também. Saímos, visivelmente desanimados. E fui, pensando, com meus pensamentos imagéticos. Continuo vendo Helena onde ficou. Estás nos braços do russo. Aí, o pensamento acompanha de perto a realidade da Avenida, a fantasia em que todos se envolvem e se divertem. E enquanto Eloim segue em outra direção, eu vou enfrentando uma curvatura no caminho. O pescoço sofre um torcicolo, de tanto se voltar à Avenida, em atendimento aos impulsos de saber o que acontece atrás.
*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor. Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.
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