domingo, 15 de setembro de 2024

Revelações - Parte XXII

Luzinette Laporte de Carvalho*

Divago este corpo (incorpóreo) leve, livre, lúdico, lúcido. Laços. Ligações. Larva da alma é o que ele é, meu corpo. Fogo. Denso, carregado de vida que canta e ri, baila e vê e sonha. E  quer com o ser inteiro e foge. E não (re)torna.

(Seu (re)tornar é um vaivém: ludismo: jogo de  infância que não finda).

Há em mim esta alegria de infância, nobre, pura. Minha alegria que conheces, estranhas e te encanta. Este dom. Esta dádiva do amor. Espada encravada. Brasa ardendo na alma. Solilóquio, meditação, exigência. Riso fresco na noite. (Inesperado-esperado-reconhecido: brota de mim, como água de fonte). Despojamento. Perda, ganho, pobreza, riqueza, descoberta, encontro e desencontro. Vias indicativas, portas batendo ao rosto.

Alegria de ser, de viver, de saber - que saber é sofrimento, dor. (Dor não é antônimo de alegria). Vibração e acalanto. Riso leve na alma, coração em luzes.

A mesma não que me conduz à alegria. (Canto e  música - de fonte - que, mesmo escondida, se revela). Mesmo se faz treva, se a estrela some. Ainda que o luar desapareça. Ou o sol. Ou cessem os risos infantis. Os agudos / excitados risos de criança. Mesmo que não se  ouçam os sinos, os que soam em carrilhões musicais, solenes ritmos vibrantes de vida e oração. Mesmo que  não se percebam mais os olhos que destilam mel ou os cantos de infância e alumbramento, cantados em surdina, noite adentro. (Adivinham-se os cantos em um murmúrio. Cálido à noite. Fresco ao meio-dia. O mesmo canto-luz da madrugada. Ou o canto-brisa do entardecer. Os passos fortes, leves da alegria, ressacando suaves na  vida, no ser. No vasto (infinito) mundo (meu). Mar, praia, céu).

Alegria, verdade do bem maior presente. Sobrevivendo à dor, às chagas, à angústia, ao desgosto, à repugnância, a tudo. Fonte sigilada. De fogo e mel, de  gelo, fel e aço. Mais forte que a morte, Mais frágil que a  fraqueza. Permanência e transitoriedade. Todas as  nuanças da vida, todas as perspectivas, características, formas, fórmulas..

Disseste-me de doce-amarga, ardente-gelada. Meus contrastes, minhas facetas paradoxais. Mais leve e macia que pluma, acrescentaste. Mais áspera e pesada que pedra.

Sou apenas uma mulher. carregando o - enorme / terrificante-fardo de saber, (pre)sentir coisas e fatos. Acontecimentos. Coisas que não é dado dizer. Que urge silenciar. E meditá-las no coração.

Porque mulher, alçar-me até aonde chegam as  águias. Descer ao mais profundo do poço e, no deserto, adivinhar o esconso veio d'água.

É tempo de reclusão para mim. De recesso. De solidão. De queima.

Deverei permanecer assim. Lá, onde não chega teu olhar, teu desejo - de domar. Os cães guardam o deserto sem limites, como a porta do paraíso perdido.

Tamanha festa íntima, feérica solidão. Música-silêncio-repouso. Intensidade-paz-segurança-conforto. As  mãos, os braços cheios da tua ausência. Os pés (nus) pronto a correr. O corpo (lúdico) bailando. O ritmo, a música do universo, no (meu) ser, na (minha) alma. O coração rebentando de beleza. A dor. A dor. A dor. Esta alegria maior que a vida. (Ninguém pode ver e continuar vivo, se apenas adivinhar nos leva tão longe).

Mão na mão. Único absoluto gesto necessário mais: nem olhar, nem gesto, nem sorriso. Tudo nasce quando tua mão toca / toma a minha. Volta todo o sentimento de segurança e a antiga ternura (presença). Todas a paz e as visões de beleza. (O infinito desta alegria que se irradia como fogo). Uma luz. Uma chama. Um balé.

Um dia, mais remoto que todos os dias, antes de todos os meus dias, eu estava no ventre de minha mãe. Já toda programada. Era um setembro. Há muito me esperavam. (Re)tardei. Porque, desde então, me fiz futura. A além tempo-espaço. Eu era/sou/serei.

Minha mãe perdeu o equilíbrio e caiu. Eu a tomara mais pesada, mais mulher. Para defender-me, para que  eu fosse / nascesse perfeita, obrigou-se a cair de lado.

Tomou a responsabilidade de se ferir, se magoar, para preservar-me, para que o ventre onde eu me  encontrava, abrigada e segura, não fosse atingindo. Para que eu dia eu soubesse o significado do sacrifício, do  pensar no outro, do meu valor.

Durante muitos dias o braço de minha mãe  ficou machucado, dolorido, com um enorme hematoma. Quase negro. O braço que me tomaria em ternura e carinho, para amamentar-me, consolar-me, acariciar-me.

Isto é demasiado grande, profundo. No âmago do  eu, antes de todos os meus dias mais remotos, fui amada até o sacrifício: tudo, contanto que eu não fosse atingida.

Esperada, desejada, querida, amada. Tecida em dedicação e sacrifício.

Por isso, ainda que me magoem, mesmo que me  joguem como uma peça num tabuleiro de xadrez, embora me ignorem, persigam ou odeiem... serei o que sou: um ser de alegria, filha da dor, como a flor do esterco, como a onda dos ventos, como o sal da água. Tenho, possuo a  alegria com a certeza dos seus contrários, da sua  (sobre)vivência. Que perdura enquanto há ascese, perdão, misericórdia, o processo do enternecer-se.

Existência a depender de uma visão da vida; eu: um sacrifício além de tudo.

Isso enche a alma de sorrisos, sementes da alegria. Na terra (árida, ínvia, inaquosa) do caminho.

Estranhos alimentos me nutrem: fogo, vendaval e tempestades. Mas também; água, leite, mel, pão e vinho. Na insondável terra do meu ser. E o óleo que alegra a  face do homem, revitaliza a terra do coração e enriquece o seu húmus.

Aquele tombo, aquele pensamento e gesto de amor e proteção.

A solicitude de meu pai por minha mãe. Como passava, como se sentia. Toda essa realidade de amor, ternura em torno de mim.

Esperada em solicitude. Futura e presente. Tudo isso gera a inconcebível alegria-entrega. Olhos limpos de  malícia, coração puro, candura de pensamento. Alegria-cristal, alegria-transparência, alegria-luz  e alegria-fonte.

Também a outra face da alegria. A anterior, primeira, (des)conhecida, provada alegria. Ante a  descrença, a suspeita, o ceticismo, no contato com o  mundo que não acredita, cego pelo prazer.

Exige provação, a alegria. Exige valores de um reino a que o mundo não quer submeter-se.

Uma prova! O dedo nas chagas? A mão na mão? O corpo no corpo? Os atos correspondem às palavras, ao  silêncio? A dor é um susto a mais?

Contato primeiro, contínuo com o espírito do  mundo? A aprovação? A prova? O silêncio irônico da  dúvida. O riso é estranheza. O olhar direto, puro, é insolência ou provocação ("Não me olhe assim!" Assim como?).

A face velada da alegria questionada pela dúvida e a curiosidade. A fonte primeira. A pretérita futura primordial pureza. A candura-raiz: uma alegria em  chamas. Tocá-la é queimar-se, arder no seu íntimo, por saber-se uma pobre-extraordinária-frágil-rara-flor-vulnerável e invencível.

Nem as muitas águas nem o fogo nem os  vendavais podem vencê-la: alimenta-se deles. É um mistério. Uma revelação. Sua natureza despida. Sua extrema gravidade, majestade, leveza, simplicidade, discrição, silêncio.

Emudece a palavra-malícia. Susta o olhar-devassa. Detém o pensamento-ousadia. Sorriso e paz no ser inteiro. Espontaneidade, vibração deliciosa, onda envolvente. Relax para qualquer tensão. Resposta à  morbidez, à angústia. Tremor que corre até às mãos e as  enche de força. Que perpassa o corpo até os pés e os  prepara para a caminhada. Repercute do cérebro em cada músculo, nervo ou célula, e os penetra de movimento e luz.

Oração somatizada. Existência feita conscientização, humanização, amorização.

Alegria. Da partida, do retorno. As revelações todas (de) limitadas entre estas duas dimensões: partida e retorno.

E eu que não retorno, eis-me a fazer a nova (antiquíssima) aprendizagem do retorno. Eu que conheço a alegria-força brotada em árvore, raiz nas nuvens, eis-me a aprender a trêmula alegria brotada de todas as quedas. Hesitação e perseverança. Debilidade e constância.

As duas alegrias têm a mesma raiz, a mesma origem, os mesmo alimentos: são uma só e única alegria. Nela não há monotonia, estática... Só desafio. Puro desafio: curvas e obstáculos, todo tipo de acidentes encontra pelo caminho.

Só os violentos palmilham essa estrada. A vida empurra a porta do meu ser e ordena-me partir. Oferece-me um tempo virgem: a rota da alegria.

O verde sucede, sempre, ao cinza.

*Professor e escritor / Garanhuns, PE - 2000.

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