sábado, 16 de novembro de 2024

Ritual da farinhada nordestina


Por Manoel Neto Teixeira* | Garanhuns

Um dos legados mais expressivos dos nossos indígenas, primeiros habitantes do território brasileiro, é a plantação da mandioca, seu cultivo, extração e manejo nas casas de farinha espalhadas por todo o interior nordestino. Rituais que vêm dos primórdios aos dias que fluem, com as adaptações, claro, a partir da chegada da energia elétrica. A farinhada, como ficou conhecida essa manifestação econômico-cultural, seu produto final, a farinha, é elemento indispensável na culinária e mesa da maioria da nossa população, especialmente das famílias nordestinas. Mais que simples preparo de um produto, envolve aspectos culturais mesclados de cantos, sons e ritmos onde não falta a cachacinha envolvendo trabalhadores e patrões.

A ingestão da mandioca (nome científico manihot esculenta, família das Euphorbiaceae), conforme registros, "previne a anemia e ajuda no controle do colesterol; tem ação anti-inflamatória e antioxidante; bom para praticantes de atividades físicas". É chamada de "pão dos pobres"; permito-me acrescentar: e dos ricos também. Pois é produto que não pode faltar na mesa de todos. Basta um talo enterrado para ela se multiplicar; resiste a pragas, dispensa agrotóxicos, alimenta gente e criações. Dele se extrai o álcool, o plástico. É "a planta rainha", na classificação de Câmara Cascudo, autor dos clássicos Dicionário do Folclore Brasileiro e História da Alimentação no Brasil.

No seu livro Em se Plantando, Tudo Dá, editora Leitura Ltda, edição 2009, Belo Horizonte, os jornalistas Mylton Severiano e Katia Reinisch informam no capítulo dedicado à mandioca: "Quando trustes americanos asfixiaram indústrias nossas e a fábrica de calçados Silva passou meses em crise até ser ser vendida, comida não faltou: a mãe servia mandioca cozida, em purê, amassada com manteiga, ensopada, frita; tapioca, beiju e bolo; e a farinha".

A mandioca, "Rainha do Brasil", move tropeiros e bandeirantes e espalha-se pela África como moeda de troca por escravos, e chega à Ásia.

O primeiro pesquisador estrangeiro a pesquisar sobre a mandioca foi o austríaco Johanin Bastist Emanuel Pohl. Ele discorre sobre a importância do tubérculo para a nascente nação, sua versatilidade como alimento.

A extração da mandioca nos roçados, transportada em burros e jumentos até a casa de farinha, coberta com palhas de coqueiro, piso de sapê, chão de terra batida. Aí começa a fase de preparação com o descascar do produto, tarefa quase sempre creditada às mulheres, lavagem e encaminhamento para os tachos, roda de madeira com veio de ferro e corda para girar a roda; em seguida, aciona-se o caititu (triturador) e a massa prensada e triturada é levada para um coxo onde ocorre a separação da manipueira e daí se produz a goma, utilizada amplamente na culinária brasileira, em forma de tapioca, manuê e tantos outros produtos. É chegado o momento de levar a massa ao forno, geralmente aquecido à lenha, e um trabalhador entre em ação para mexer de um lado para o outro a massa que, logo mais, se transforma em farinha.

A mandioca está ligada inclusive à política no Brasil colonial. Tanto que a primeira Assembleia Constituinte da nossa história, convocada pelo imperador Dom Pedro I, em 1823, tinha como norma, para escolha dos votantes, critérios baseados na produção da mandioca: eleitores de primeiro grau (pardeoquial), que elegeriam eleitores de segundo grau (provincial) tinham de provar renda mínima de 150 alqueires de mandioca, os de segundo grau elegeriam deputados e senadores, 250 alqueires de mandioca; e os candidatos. 500 alqueires (para deputados) e mil para senador.

Recordo da casa de farinha dos meus avós paternos, Manuel Jacinto e Salustriana Melo, no sítio "Capim", na então vila de Pau Ferro, hoje Itaíba, tinha apenas quatro/cinco aninhos. Em dia da farinhada era trabalho mesclado com festa, aboios, cânticos, toadas. Quanto telurismo, jamais esquecerei.

A mandioca é cultivada por pequenos, médios e grandes proprietários, portanto, um produto verdadeiramente democratizado entre os brasileiros. O produto final, a farinha, não falta nos grandes e pequenos mercados, feiras livres e mercadinhos, de canto a canto do Brasil.

Por fim, volto ao livro Em se Plantando, Tudo dá: "Mandioca dá farinha, farofa, pirão, beiju, tapioca, tacará, tucupi, maniçoba, bolos, doces, polvilho, ração animal vitaminada, que inclui a folhagem. E já pensou em plástico-filme biodegradável, comestível e antibacteriano?

Segundo a pesquisadora Priscila Veiga dos Santos, plástico leva 100 anos para se decompor, mas este, a partir do amido da mandioca, pode-se até comer.

*Manoel Neto Teixeira, autor, entre outros títulos, da série MULTIVISÃO, com dez volumes, é membro da Academia Olindense de Letras). (Texto transcrito da Revista Cultural O Século de junho de 2024).

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