Sebastião Jacobina | Garanhuns, 21/01/1995
No último número deste semanário e nesta página de Letras e Artes, foi publicado um texto lido em reunião do Grêmio, na qual falei sobre a personalidade do poeta Alfredo Rocha.
Decidimos, os gremistas, sempre trazer a público, em sequência, notícias sobre a atuação e trabalhos literários de companheiros que nos deixaram por variados motivos, iniciando-se com o texto acima citado.
Achei de bom alvitre, pela qualidade de boa literatura demonstrada na atividade gremista de José Tadeu de Goes, que deixou Garanhuns, há anos, em virtude de transferência de suas funções profissionais, de dar continuidade à intenção do programa idealizado, publicando uma das crônicas da autoria daquele gremista (premiada em concurso de âmbito nacional), a seguir transcrita:
O Galo Apátrida - "O último galo urbano que anunciava o amanhecer, comi ontem a bordo do "Concorde", "Coq au vin"."
Tocou-me o íntimo a crônica intitulada HISTÓRIA PESSOAL, do jornalista Paulo Fernando Craveiro - publicada em edição do Diário de Pernambuco - em que o cronista quase se esvai num misto de lamento e denúncia acerca do incontrolado processo de extinção "dos grandes quintais pernambucanos de árvores barrocas".
É incrível com certas realidades estão fadadas a morrer. Haverá uma época em que nos sentiremos destituídos até da faculdade de poder evocar alguns valores, antigos conhecidos de nossa infância remota e irreversível.
Há dois anos - quando da leitura da crônica sob comentário - fui à cidade do Recife e fiquei hospedado nas imediações do Derby, velho bairro que considero privilegiado pela complacência dos inimigos da ecologia, visto que ainda tem de resto um galo e alguns quintais.
Na ocasião, em determinada noite em que ali dormi, lá pelas tantas acordei ouvindo o cantar insistentemente frágil e solidário de um galo - a que denominei de o Galo do Derby - que em vão tentava ouvir o eco do seu veemente protesto contra a iminente invasão do seu sítio.
Os edifícios podem formar gigantescas "florestas", podem igualmente ser denominados de verdadeiras "montanhas", por sua imponência, porém jamais reconstituirão e devolverão o habitat dos galos solidários cuja sorte mais provável talvez seja transformarem-se em apetitosas receitas sugeridas por qualquer falso "Maitre-d'Hotel" (Ou eu não me chamo Pierre).
Na minha infância os galos também já eram desprotegidos, em pleno Sertão. Mamãe costumava fazer deliciosos pratos de galinha à cabidela, ou ao molho pardo, só que as vítimas nem sempre eram necessariamente galinhas; podiam ser também frangos ou capões.
E foi de tais lembranças e reflexões que cheguei a uma lamentável conclusão: no Recife, como em todas as metrópoles do mundo, não só os quintais, barrocos ou não, estão morrendo ou já mortos, mas também as próprias madrugadas estão à mercê da inclemente metamorfose pela qual vem sendo vitimada a natureza.
Os museus ditos da imagem e do som que se cuidem. Urge que certos elementos - a que não denomino mais de valores - sejam arquivados para a posteridade, a fim de que um saudosista visitante do futuro possa ouvir através de serviços de som sofisticados, explicações do tipo: - Senhores visitantes, a cena a que assistem tenta representar uma madrugada (belo espetáculo de que nossos antepassados desfrutavam "in-loco"). O som de fundo é o arremedo do galo: macho da galinha doméstica. Ave extinta do gênero das galináceas, da ordem dos galiformes. Era muito. Era muito apreciada por sua carne tenra e rica em propriedades nutritivas. Antigamente teciam as manhãs com o seu cantar belo e majestoso, como no poema de João Cabral de Melo Neto: Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro, de um outro galo / que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro, e de outros galos / que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos de galo, / para que a manhã, desde uma tela tênue se vá tecendo entre todos os galos.
Mas os galos estão abandonando as madrugadas do mundo, e com eles - lamentavelmente, nos quintais remanescentes do Recife - estão a morrer as próprias madrugadas.
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