quinta-feira, 6 de junho de 2024

Saudades do Rio Una

Cidade de Altinho em 1910/Créditos da foto: Blog do Iba Mendes

José Patrocínio Oliveira* Garanhuns, 07/03/1987

Aquilo não é flor que se cheire, dizia meu tio Nô a apontar-me de longe, um muxoxo de desprezo e de certa comiseração porque eu era filho de seu querido mano Orlando. Pobre do mano, acrescentava contrafeito, "tanto que reza e lhe surgiu aquilo". O "aquilo" era eu, sem dúvida, Zé de Orlando, referido por todo mundo de Altinho como aquela coisa que não vai dar pra nada.

Acontece que eu já queria, aos doze ou catorze anos, aprender a passar bicho à porta da loja de fazendas, de meu tio Sebastião, ou à frente da padaria de seu Rocha (na realidade do tio Bastião), na parte posterior da residência de meu próspero parente, negociante de tecidos.

O que eu esperava era um milagre da Divina Providência. Porque não estudava em lugar nenhum. Em altinho, só havia. Externato Santa Teresinha, do vigário Bernardino Carvalho, misto mas só o curso primário. Primário por primário eu era já um deles de casco rachado. Lia tudo que me caia às mãos e, por isso, tido e havido como "vexado da bola". Esperava o tal milagre ou um estalinho na cabeça do Santo Cristo, entronizado pelo padre Francisco de Água Preta, defronte da matriz da cidade, do Alto Alegre do prefeito Rubens Lemos, na rua do Comércio, a principal, não sei  à época Praça João Pessoa, como era de costume.

Somente meu tio Omena, rábula danado de inteligente e bem preparado, um pau-d'água para ninguém botar defeito, fazia uma fezinha em mim. Emprestava-me livros, conversávamos nos dias ou semanas em que aparecia por lá a fim de ver o mano seminarista, hoje Monsenhor Nestor Alves de Oliveira ou sua mãe, bem velhinha, minha vô Omena. Diabo é que essa fé era somente em seus  dias dos portes homéricos de meu tio-advogado. Conversa de bêbado, dizia meu advogado, o supradito tio Nô.

Lembro-me de passagem pitoresca de meu tio, escutando com certo horror por mim, de fé católica (com cacófato e tudo) acendrada, ao dirigir o dedo indicador para a imagem: sabes o que diz o santo, assim de braços abertos, Zé?... Diante de minha negativa, meu tio-doutor, a rir pelo canto do seu grosso lábio inferior, aduzia:

- Daqui pra lá Sebastião já comeu todas... Sabedor dessa "heresia", meu tio Bastião advertia o mano: "não faça isso porque depois padre Bernardino sabe e lá vem um pedaço de céu velho abaixo... É Maria José, seu doido; respeite sua cunhada", Zé-Omena prosseguia a rir e batia-lhe no ombro: "Tens a quem puxar, mano velho..." e caminhava em direção à próxima bodega para uma tacada de boa cana. (Confesso que o ajudei nisso algumas vezes).

Nunca me confessei em Altinho com padre nenhum, muito menos com o vigário da paróquia. Muito fiz isso uma vez pelas missões. O sacerdote era de fora; viera de Jurema e ficara apalermado diante de um pecado mortal ao revelar-lhe que ia amar solitariamente, à beira do rio Taquara, olhando moças da terra tomarem banho. Sapecou-me penitência de cinquenta padres-nossos mas abri o bico no vinte. Pedi perdão a Deus e comunguei no dia seguinte, um domingo, bem depressinha, porque era do banho matinal da garotada feminina altinense. Eu me deitava rente ao chão no meio do capim e ficava a ver i vaivém, seguido das conhecidas contratações de todo corpo.

De Altinho, volta meu pai a Caruaru num velho caminhão com a família e o filho mais velho Zé de Orlando ou Zé Catuaba, de fama ruim pespegada à pele e à alma, configurada quando o velho, fabricante de vinhos de toda natureza, inclusive cerveja, cujas garrafas apareciam nas prateleiras das mercearias da Capital do Agreste com rótulos da Brahma, mandou o tal filho, de pincel (canela-de-ema) e tinta (roxo-rei) escrever nos muros propaganda de seu vinho reconstituinte de Catuaba.

Havia nas farmácias um meio-corpo de gente, musculoso, dobrando, encurvando um pedaço de aço e logo abaixo o letreiro "Acontece que você não pode. Possa, tomando Biotônico tal". Meu pai queria imitar. Fui e fiz as propagandas em diversos muros. De noite, no sermão do terço, o padre Andrade passava um pito em seu Orlando por causa da insinuação maldosa de sua propaganda comercial. Da igreja meu pai já voltou pra casa de cinturão na mão. Mas eu já tomara o oco do mundo. Acontece que eu escrevera em sua propaganda PODE com PH...

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