João Marques* | Garanhuns
Eloim é perseguido pela polícia. Ele conta a história a Marcos de Safo
Inquietação. Eloim espera por guerra, mas não há guerra. Nenhum conflito armado. Guerrilhas assim, dos países da América do Sul. Tem vida de guerreiro. Luta pela sobrevivência e a do idealismo. É irmão único de Helena. Mora com ela, vive pobre e, diferente da irmã, estuda. Mal pode manter-se estudando. Revoltado certamente por isso. Inteligente como poucos. Chega a ganhar algum dinheiro dos amigos, dando aula de reforço das matérias que estuda. Da irmã depende o sustento. E esta, por sua vez, depende do amante, Nicolau, um russo. Eloim sofre muito, com tudo isso. Queixa-se a mim sempre e tem ideias exageradas. É amigo, porque pisa firme na Avenida e acredita na possibilidade de chegar. Jovem, aparece na manhã, com o vigor da idade e do idealismo.
Às armas, se preciso for, me diz. Conhece as histórias de todas as guerras e heróis. Quase vai para Venezuela, pretendendo integrar-se a revolucionários da briga de lá. Não vai, porque sua irmã chorou muito e, na tarde, chega a escorraçá-lo de casa. Depois, já destituído da ideia, combina para se encontrar comigo. Espero-o, sentado a uma mesinha na calçada do Café Central. Um café de todos, frequentado também por ele. Encontra-se cá com políticos e pessoas mais velhas, e debatem assuntos de governo.
Espero com a manhã, que sempre espera primeiro. Chega um pouco atrasado, senta e diz que tem uma história de perseguição para contar. Companheiros de ideologia vão a uma elevação da Avenida à tarde. Eufóricos.
O tempo na Avenida é mágico. A tarde é intensa, quando é necessário no dia. A tarde e a manhã transcendem entre si. A noite, que é a sombra atrás do dia, pode atingir momentaneamente algum lugar da Avenida, se necessário for. O conto, com o seu dia, pode intervir na natureza. Assim, a tarde escurece em um monte. Turva a luz do sol, o grupo faz tiroteio de fogos de vareta em um monte em sombra. O festejo no espaço escurecido é para comemorar aniversário do grande líder do movimento, Luís Carlos Prestes. Costumeiramente, isso se repete em todo o aniversário do líder. E a cada vez escolhem pontos diferentes. A polícia persegue os comunistas, para impedir a manifestação. Nunca consegue evitar, contudo, confundida que é pelos manifestantes.
Dessa vez, a polícia surpreende todos, com cerco inesperado, que faz. Mas, antes de serem alcançados, correm os comunistas, cada um em direção diferente. Eloim, alto e jovem, corre descendo a ladeira da rua. Os soldados atrás. Sentindo que pode ser alcançado, ele se aproxima do cemitério num canto da rua. E, aos gritos, na retaguarda, de pare, pare... o jovem calcula o pulo e, vupt, por cima do muro, cai do outro lado. Caim bem. Corre mais para o interior do cemitério. A claridade é muito fraca nesse extremo. E, entre os túmulos, é quase escuridão. O sargento, comandante do grupo dos soldados, grita que cerquem o cemitério. Esbraveja cá fora:
- Esse comunista não me escapa!
Eloim treme de pavor ao escutar a ordem terrível do sargento. Chegam mais soldados, que haviam abandonado a perseguição aos outros comunistas.
Os túmulos, imóveis e finados, podem significar fim de pista. Pensa. Eloim, entretanto, não pode admitir fim ou término de sua corrida. Anda para lá e para cá, escutando. Qualquer sinal de vida feito procede da rua. Sabe. Os túmulos, quietos e indiferentes a tudo. Só o vento, ao deslizar entre paredes e cruzes, dá sinal da existência. Não está morto, porquanto pode correr à vontade. Lembra-se de histórias sobre os mortos. Aparições e sonhos. Não tem medo dos mortos cá de dentro. E o foragido fica mais calmo, por não sentir nenhuma ameaça por enquanto.
Resolve sentar-se e ficar encostado aos túmulos. Descansa e pensa, fazendo alguma fantasia de sua situação. A vida e a morte. Ali, todos encostam para sempre os corpos desfeitos, perdida a liberdade de correr. A vida é assim mesmo, conclui. É-se livre, enquanto se corre. Acomodado, como se encontra, não tem outra escolha. Sentar e esperar. Os guardas conversam uns com os outros, enquanto fumam. Eloim ouve e sente que não vão abandonar os seus pontos. Espera a claridade da manhã libertar-se e apagar a sombra intensa da tarde. E tem esperança maior. Até que, de fato, pode ver melhor. Meio desesperado, pensa em alguma forma de escapar. Um desafio. Fugir dentre os mortos, para a vida. Sem saber o que fazer, caminha devagar. Aproxima-se de uma casinha, dentro do cemitério, junto ao muro da frente. A luz natural não é plena ainda. Empurra a porta encostada e sem fechadura. Entra sem notar a palavra escrita na parede de fora. Necrotério. Vê um ataúde dentro. Puxa a tampa para cima e descobre um cadáver de uma velhinha. Por algum motivo, certamente, tinha ficado para depois o sepultamento. Falta de algum documento, horário de atendimento excedido, alguma coisa. Ao lado do ataúde, um castiçal com vela acesa. E outra vela maior, pouco usada, ao lado. Imediatamente, aí, concebo o plano de sua fuga.
Apressado, tira o cadáver e, com esforço, esconde em um túmulo em desmoronamento. Usa uns tijolos e abandonados na ocultação. Volta, com a mesma pressa, e acende a segunda vela, maior, para iluminar mais tempos. Com cuidado e muita habilidade, deita-se dentro do caixão, encolhendo como pode as pernas e fechando por dentro a urna. A tampa não fica bem acomodada, mas fica segurando e puxando para baixo. O esforço é grande. E fica aguardando a claridade inteira. Enfim, a manhã entra também no cemitério. O sargento, furioso, dá ordens para os homens permanecerem em seus lugares, ao redor. E entra acompanhado de três soldados. Procuram o comunista por todo o canto verificam tudo que se encontra fora dos túmulos. O que fosse vivo. Nada. Insistem, com os ouvidos atentos. Nada, só os mortos. Admitem, então, que a fuga se deu de alguma forma.
O infeliz foi desterrado para o inferno, comenta o sargento, esfregando os olhos sonolentos. Desanimado, notando ainda a casinha do necrotério, aproxima-se e entra para verificar. Deparando-se com o velório, fica de pé. Religioso, junta as mãos em forma de oração e reza baixo o Pai Nosso. Recomenda o corpo, que supõe estar ali, morto, à ventura do céu, e benze-se. Sai e, bondoso, autoriza o recolhimento dos soldados. Todos se vão.
Eloim espera e, admitindo que não há mais ninguém, sai. Corre e pula o muro para fora, nos fundos do cemitério. Andando, já livre do susto, sente-se agora mais vivo do que nunca. Conta-me, ainda, que quase morre de medo, quando vê a entrada do sargento no necrotério. Olha pela fresta, entre a tampa e o lado do caixão, e percebe que o sargento reza. Quis rir, mas se conteve. Não devia. Encontrava-se morto, dentro do caixão, para ressuscitar vivo depois. Rimos muito de tudo. Eloim, alegre, por continuar entre os vivos, e livre.
*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor. Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.
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