quinta-feira, 4 de julho de 2024

O tal fogo corredor

Noite na Serra | Créditos da foto: Anchieta Gueiros

Cristóvão Bezerra*

Do alpendre da casa da fazenda do meu avô, avistávamos uma grande serra que escondia o povoamento de Serrinha, distrito de Saloá. Sobre esta serra havia uma grande capoeira e muitas estórias de aparições de entes desconhecidos, contadas pelos mais velhos. Uma delas versava sobre aparições de um fogo corredor que segundo os relatos, na última aparição, fez surgir um imenso clarão que chegou a ser visto de Iati até o pé da Serra da Prata. Contavam que eram duas bolas gigantes, com movimentos agitados, que lutavam entre si de forma insistente. Muita gente tremia de medo só em ouvir falar em uma possível nova aparição desse objeto reluzente, sobretudo as crianças. O senhor Júlio Pedro, morador da fazenda do meu avô, alardeava categoricamente que o grande dia estava próximo a chegar e que o bicho esquisito viria cuspindo labaredas de fogo pela boca e pelas ventas, que seria visto a dezenas de léguas de distância e eu, então com onze anos de idade, não conseguia dormir antes de chegar as traves e taramelas das portas e janelas, só pensando nesse monstro atormentador. O medo era tão intenso que me fazia pensar em formas de enfrentamento ou rotas de fuga caso o dito cujo desse o ar de sua graça. Na possibilidade de combater esse inimigo eu imaginava uma reação com as armas que os meus tios possuíam em casa, pelas minhas contas, eram duas espingardas soca-socas, uma pistola velha que mais parecia um trabuco, um rifle do papo amarelo que era guardado sobre segredo para que ninguém soubesse da sua existência e uma poderosa espingarda reúna de cano grosso, além das facas peixeiras e alguns facões rabo de galo. Desse arsenal eu acreditava mais no potencial da espingarda reúna, uma vez que a grossura do cano sugeria alto potencial destruidor e só era utilizado pelo meu tio Rafael nas noites de São João, onde cada tiro era antecedido por um ritual de preparação que consistia em afastar para mais distante todas as pessoas que curiosamente esperavam para aplaudir e dar os gritos de viva São João  e elogiar a habilidade de meu tio que se contorcia rodopiando o corpo para amaciar o coice provocado pela explosão daquele tiro de respeito que espalhava todo o braseiro da fogueira, O senhor Júlio Pedro, nos seus exageros, alardeava que meu tio aprendera a manusear aquela reúna com um descendente de um ex-combatente da Guerra do Paraguai.

JOSÉ PAZ

Porém quando batia o medo eu achava que seria inútil o uso daquelas armas e imaginava uma maneira de fugir rapidamente para pedir socorro em outras plagas. Meu plano consistia em utilizar o cavalo quarto de milha do meu avô, manhoso e de cabeça dura que desembestava sem que ninguém pudesse dominá-lo e sua velocidade seria tamanha que nenhum fogo, por mais corredor que viesse a ser, jamais conseguiria me alcançar. Poucos se atreviam a montar naquele cavalo desenfreado, mas caso o grande fogo aparecesse eu ia correr o risco e tentar chegar à casa de José Paz, irmão da minha avó, que morava no Santo Antônio, há mais de duas léguas de distância.

Também na minha inocência eu acreditava que entre todos os parentes e aderentes, o único cabra enfezado e destemido que podia peitar aquele fogo avassalador era Salomão Paz, pois o mesmo era dado a derrubar boi brabo nas vaquejadas, dirigia caminhão grande, torcia com facilidade e desenvoltura o pescoço das novilhas para o veterinário vacinar e sempre andava com um "tresoitão" na cintura.

SERRA DE SÃO PEDRO

O tempo passava e nada acontecia naquele rincão senão a desconfiança e inquietude, até que em uma noite de calor escaldante, uma mulher de uma fazenda vizinha, com um menino pequeno escanchado do lado, chegou ofegante e muito aperreado, apontando para o lado direito da Serra de São Pedro, em um ponto um pouco afastado da rede da Chesf, mostrando uma luz que brilhava levemente, crescia e decrescia em fração de segundos. Eu já beirava quatorze anos e já não sentia o mesmo medo que me inquietava na passado, fiquei com muita curiosidade e ansioso com a possibilidade de descobrir ou talvez até desvendar o mistério do famoso fogo. Lembro-me que olhando de baixo e pela distância da rede de luz, dava a impressão que havia realmente algo parecido com fogo, porém de um formato muito diferente do que mi diziam e, pelos cálculos, ele estaria na Serra de São Pedro e parecia que iria se deslocar para o outro lado da serra, no rumo da Jueira. Três horas mais tarde o fogo desapareceu, fui dormir com um pouco de decepção, uma vez que o fogo apareceu em outra serra, no lado oposto e tinha um tamanho tão reduzido que mais parecia luz de vela. Era janeiro, eu estava de férias escolares e esperei ansiosamente o sábado da feira de Bom Conselho para tentar encontrar alguém que morasse nas proximidades do local da aparição para perguntar sobre o acontecido. Encontrei Heleno, casado com minha tia Maria que, na época, moravam no  sítio Riachão, bem perto da dita serra, porém ele nada tinha visto nem escutado falar, mas sugeriu que procurássemos algumas pessoas da redondeza que porventura pudessem dar notícia do fato. Primeiro encontramos Mané de Louro, homem muito sisudo que morava próximo da perigosa curva do "S" da serra de São Pedro que logo desconversou, apenas disse que deveria ser as almas de dois compadres que, no passado, moraram naquele lugar e morreram intrigados por ocasião de uma disputa por duas braças de terra na divisa de suas cercas. Em seguida fomos procurar Edgar Alapenha, que era primo de Heleno e possuía uma fazenda na Jueira. Ocorreu que Edgar, homem sem meias palavras, dizia o que queria sem se incomodar com os ouvidos de ninguém, estava numa bodega do pátio da feira e assim que nos viu, pediu logo três doses de cachaça Mucuri e aí então eu percebi que seria inevitável e naquele momento eu teria que tomar o primeiro gole da cachaça da minha vida, mais valeria a pena pela curiosidade que o assunto sempre me despertou. A "marvada" desceu rasgando tudo goela abaixo e Heleno logo cuidou de explicar o motivo pelo qual nos o procurávamos, porém Edgar, com seu jeito peculiar e em tom de chacota disse que nada havia aparecido por aquelas bandas, muito menos fogo para amedrontar cabra frouxo ou então era invenção de algum esperto para carregar a mulher de outro. Disse ainda, que se algo tivesse aparecido deveria haver algum corno chorando a falta da mulher e lá prá baixo da serra quem viu este foguinho ia passar muito tempo se borrando de medo. A partir daí, tomei por insistência de  Edgar a minha segunda dose da carraspana e deixei os dois primos por lá se deliciando com tira-gosto de tripa assada. O senhor Júlio Pedro era analfabeto de pai e mãe, mais era um bom contador de estórias e possuía alguns folhetos de cordel que sempre me pedia para ler em voz alta. Nesta época ele tinha muita admiração por mim, sobretudo pelo fato de eu saber toda a tabuada, dominar as quatro operações básicas de matemática e cubar terra, ficou muito triste quando lhe informei que ninguém dava notícia do tal fogo aterrorizador que ele tanto propalava e que meu professor Manuel Miranda tinha me falado que havia uma explicação científica que justificava a existência daquele fenômeno. A partir desse dia, o Senhor Júlio Pedro deixou de inventar suas estórias e as noites de verão perderam um pouco do encanto de outrora. (*Transcrito do jornal A Gazeta (Bom Conselho) de 16 de dezembro de 2013).

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