sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Ser é da mulher

Poeta Cyl Gallindo (1935-2013) | Foto: Alexandre Severo/Acervo JC Imagem 

Cyl Galindo

Creio que nem eu mesmo saberia avaliar o quanto tenho me debatido na busca de um argumento decisivo para provar que a vida se resume ao instante em que vivemos. Nada mais! Se estivermos diante de um interlocutor e viramos o rosto, passamos para outro instante da vida. O que está à nossa frente, preenchendo o consciente, constitui a nossa mais absoluta realidade concreta. A vida é o momento, o instante consciente de se estar vivo. Ao fecharmos os olhos, essa realidade passa a ser diáfana. Se nos pedirem que, de olhos cerrados, a descrevamos, muitos detalhes desse quadro não irão constar da descrição.

É isso que me leva a compreender que a vida se resume ao instante, àquela fração de segundo captada pelos  nossos sentidos, pela consciência. Daí a enorme importância da fotografia, da pintura, do desenho, do filme ou vídeo, enfim, de todos de todos os meios que possam eternizar cada instante vivido. Fora desse lance, resta-nos o passado, que não vai além daquilo que a memória é capaz de armazenar. Quanto ao futuro, esse é pura e simplesmente conjectura.

Não sei se algum filósofo ou cientista já definiu esse instante com a precisão que ele exige. As obras literárias que conheço, especialmente poemas e contos que incidem sobre um momento, normalmente têm como base o passado, por mais presente que possa parecer.

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Finalmente, acabo de ler um livro que se  reporta com clarividência sobre esse momento, esse instante, considerado vital. Não tive condições de interromper a leitura antes de chegar à última palavra. Desprovido de adjetivos, é o momento substantivo, concreto, único, entretanto perfeito e comovente. Singularíssimo! Seus personagens estão diante de um sinal de trânsito, cuja luz está no amarelo. Se mudar para o verde, a realidade será outra. Se passar para o vermelho, os motoristas poderão prolongar esse flagrante, mas sem refletir. De um dos veículos, o homem fita a mulher que está no outro, ao lado. Ela, consciente de que o tempo não passa, nós é que passamos, entrega-se, por inteiro, sem passado nem futuro, ao instantâneo, no premente desejo de fixa-lo, antes que seja triturado pelo tempo.

Essa atitude foi gravada pela escritora Luzinette Laporte de Carvalho em 'O Homem com Girassóis no Olhar'. Ao fixar o momento desse encontro entre o homem e a mulher, realizou um dos mais belos romances da Literatura Brasileira. Denso, compacto, substantivo, como já disse, mas com aquela recomendação de Che Guevara: sem perder a ternura jamais. Ternura, no dizer de Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, apresentadora do livro 'Só apreendida pelos que têm sensibilidade e lucidez".

É um espelho, não prende, não segura, não eterniza o que nele se reflete. Retirando-se de sua frente, vem outra imagem, outra paisagem, outra realidade. Luzinette Laporte penetrou no espelho e construiu uma existência a dois nos labirintos de frações de segundos. Não houve tempo para  diálogos, digressões, conjecturas. Era construir ou ceder o lugar para outra imagem, outro instante. A autora captou a trama inadiável e a perpetuou com sabedoria e elegância. Nada de sentimentos proustianos nem premonitórios.

Proclama-se mundo afora que, na trajetória humana, ao homem coube tudo e à mulher, apenas o papel de coadjuvante. Discordo frontalmente: ao homem coube caçar, pescar, guerrear, produzir e acumular riquezas que, em síntese, significa Ter. A mulher ficou com a enorme tarefa de ser mulher e mãe, eixo sustentáculo da família. É aquela que ama, chora, sente, acode, a dona do sexto sentido, a feiticeira, a fada, por conseguinte, detentora do Ser. Quem tem noções preliminares de Antropologias Física e Cultural, sabe o significado de herança genética, nos processos de aprendizagem e aperfeiçoamento da raça humana, transmitida de geração a geração. Nesse quadro, a mulher é um ser  completo, faltavam-lhe, tão somente, algumas conquistas sociais.

Não obstante trazer a História nomes de grandes mulheres, somente do meado do século passado para cá, a mulher despertou para a conquista individual da sua  cidadania, esteio das conquistas sociais que lhe faltavam, e fato que inclui uma criação intelectual própria. A partir daí, em lugar de heroínas, despontam levas de artistas, cientistas, filósofas, escritoras e poetisas, com produções surpreendentes, afora cantoras, musicistas, bailarinas, atletas, políticas, empresárias, que dominam suas áreas de atuação. Produção surpreendente, repito eu, pela profundidade dos  temas abordados, pela mestria na abordagem desses temas e  pela convicção com que são expostos e defendidos, donde se conclui que a mulher não está saindo da escola primária. Ela  revela-se produto e portadora de todo o processo daquele aperfeiçoamento da raça. Não manariam do vácuo criadoras do porte de Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Adélia Prado, Hilda Hilst, Clarice Lispector, Astrid Cabral, Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, Luzilá Gonçalves Ferreira, Luzinette Laporte de Carvalho, e quantas mais, para enfocar apenas o plano nacional.

O Homem com Girassóis no Olhar, por exemplo na categoria de obra universal, não porque é bem escrita, mas porque o semáforo, objeto do enredo, pode estar em qualquer esquina do mundo e não apenas em Garanhuns e, aí, acontecer o encontro Homem/Mulher, motivador da vida e  gerador de vidas. Encontro/Arte, na definição de Vinicius de  Moraes, e como enaltece a própria Luzinette Laporte; 'Somos dois seres conscientes do encontro' para adiante arrematar: 'passamos da morte para  a vida quando amamos'.

Com autoridade de quem analisa o texto a partir do  interior da palavra, defende o poeta e crítico Paulo Gervais, na  orelha do livro, que maior do que encontro, é 'pô-lo em  palavras no papel em branco,... é achar o sentido para a existência'. Em outras palavras, Paulo mostra a necessidade de se saber eternizar o instante, para que o exemplo não se  perca, multiplique-se.

A história da personagem eletrocutada pelo motorista que tinha girassóis no olhar é fascinantemente bela, efervescente, ágil, delicada, cativante. Caberiam ainda dezenas de adjetivações, mas se a autora se recusou a fazê-lo, cessa aqui a minha autoridade, deixando a outros leitores o direito de defini-la, com a sua própria emoção. (Garanhuns, dezembro de 2001).

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