sábado, 10 de fevereiro de 2024

O Banho na Praça


Manoel Neto Teixeira*

Era início de expediente. Mas  a cidade já engrenava no ritmo ofegante, inerente às metrópoles. O ruído ensurdecedor e a poluição que correm pelos escapes dos automóveis davam a sua nefasta contribuição para tornar o ambiente cada vez mais nocivo a saúde humana. As filas já se formavam à porta do banco à espera do atendimento. Na face de cada um estampava-se um ar de expectativa, de ansiedade. No pulso  na algibeira o relógio ditava a marcha regressiva do tempo. Entreolhavam-se homens e mulheres, indiferentemente. 

PULAR DE ALEGRIA

Na praça, o espetáculo. Ou melhor, no jardim florido e cuidadosamente podado. O jardineiro, mangueira à mão, espalhava a água como se estivesse a oferecer às plantas o indispensável desjejum. Houve momentos  em que fui tomado pelo desejo de ser aquela criança. Pobre criança. Pobre aos olhos da multidão. A mim ele  transmitia algo diferente. Sobretudo nos momentos em que saltitava feliz, enchendo o peito de alegria, à medida que os baldes d'agua caiam-lhe sobre a cabeça e escorregavam sobre a sua barriga grande, cheia de vermes, e atingiam-lhes as pernas finas, moldadas pela desnutrição. Mesmo assim, encontrava forças para pular de alegria, sem ter no corpo o peso de qualquer vestimenta.

De repente a multidão espalha-se. As portas estavam abertas. Era tempo de atendimento. Os caixas do banco davam  os últimos retoques para o início de mais uma jornada. Rompi com a multidão insensível. Cedi minha vez a um retardatário qualquer. Não resisti. Lá fora, permaneci atraído, envolvido mesmo pelo espetáculo. A criança, dentro do encantamento próprio a todo ser da idade, não importa a condição social ou econômica,  transmitia-me uma mensagem de liberdade que somente a criança saber ter, ou somente a ela é reservada.

A MÃE

No interior do lar, tudo não passaria de uma rotina. Um ofício diário comum a todos. Mas na praça, não. Era  mesmo espetáculo. A multidão (quando havia) contemplava. Uns, indiferentemente. A outros, coube momentos de reflexão. Quando menos, de condução ao passado aos  dias de infância. Particularmente, volvi  a esse belo tempo. Cheguei a sentir inveja daquela criança, a ponto de embriagar o meu próprio consciente, por alguns segundos. A mãe, alquebrada pelo peso dos anos e do físico avantajado, certamente uma falsa gordura, compunha a cena. Ressalte-se o cuidado com que, sem dar bolas para ninguém, cumpria a sua obrigação. Obrigação emana de quem sente como mãe.

Numa praça pública plantada no coração da cidade, numa área cuidadosamente guarnecida, não é habitual cena como aquela. Mas ninguém se atrevia a interromper o espetáculo. Nem mesmo os guardas, que pareciam mais preocupados com o vaivém dos clientes e com o carro que transportava o dinheiro do banco. Ou, quem sabe, foram  também envolvidos pelo sentimento de quem um dia sorrira como criança. Banhando-se como criança. No rio, na maré ou na praça. Não importa.

Aos que se dizem espíritas, poderia ser alguém que vivera em tempos remotos em que estava ali, em praça pública, reencarnado, a consumir mais uma vida, ou simplesmente dando a sua mensagem. Para os adeptos do catolicismo, era uma criança qualquer, mas que  bem poderia lembrar o menino Deus, na manjedoura ou vivendo os primeiros anos na Terra Sagrada. Para outros, era apenas uma criança sem casa, como muitas que nascem numa área geograficamente caracterizado por problemas decorrentes das intempéries são, ainda, inflamados por aspectos sociais e econômicos desfavoráveis a uma comunidade. Do outro lado da rua, a uns cinquenta metros, uma carroça de cachorro quente. Ao lado, um homem, tez escura, chapéu de palha, cuja  face tinha já curvas do tempo e de uma vida trepidante, sofrida. O pequeno estabelecimento ambulante ostentava um nome, uma legenda, como se fosse uma  marca registrada - e na verdade o era: "Churrascaria Tabaiara". Nome de um grupo de primitivos, cujo sangue corre nas veias daquele homem - talvez sem que ele  próprio o saiba - tal como ocorre com qualquer brasileiro, mercê do fenômeno da miscigenação racial. Estavam, ele e a carroça, a esperar de volta, a mulher e a criança, após o banho na praça.

E de maneira resoluta, partiram. O filho a imitar a mãe. Estava conduzindo um balde cheio de água. O mesmo recipiente com o qual jogava água sobre o corpo do menino. Caminhavam vagarosamente. Cuidadosamente. A criança presa à mão. Já não havia mais a mesma liberdade. A liberdade do banho na praça. Deparavam-se com o trânsito irreverente, a pista de asfalto a atravessar. Para os espectadores, era fim de espetáculo. Para os protagonistas, apenas o começo de mais um dia de incertezas, numa avenida qualquer da Capital Pernambucana. (*Publicado no Diario de Pernambuco, edição de 28 de março de 1976).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

João Marques nos deixa com todas as letras

João Marques dos Santos Gerson Lima* | Garanhuns Quem lhe deu ouvidos, ouviu, de um corpo literário ambulante, poemas agudos da solidão de u...