Michel Zaidan Filho*
Para os propósitos dessa apresentação, vamos sintetizar a evolução político-cultural de Garanhuns em cinco períodos, que correspondem grosso modo à própria evolução política do país e particularmente das relações entre a União e os sentes subnacionais e conjunturas da história nacional. Primeiro período, das origens até a hecatombe de 1917. Segundo período, da hecatombe de 1917 até 1937, com o golpe do Estado Novo, e a chegada de Agamenon Magalhães ao poder. Terceiro período, do Golpe do Estado Novo até a redemocratização. Quarto, da redemocratização até o Golpe de 1964. E finalmente, o quinto, que se estende até hoje, passando naturalmente pelo fim do regime militar e pela nova república.
SIMÔA GOMES DONTÁRIA DESSAS TERRAS
O que chamamos aqui de primeiro período é aquele que remonta às origens do povoado de Santo Antônio, ou a Vila de Cimbres, que deu início ao município de Garanhuns. Ou seja, o imenso latifúndio agropastoril que formava então os domínios territoriais de Simôa Gomes, a donatária dessas terras. Inicialmente, Garanhuns fazia parte de imensidão territorial de uma casa de Fidalgos, os Garcia da Torre, que se estabeleceram em Penedo, e que, por doação da coroa portuguesa, passaram à condição de donatários feudais, estabelecendo o domínio desde as terras da Bahia até a Paraíba. Nessa imensidão territorial, é que se recortou o território que viria dar origem a GARANHUNS, a partir do latifúndio de Simôa Gomes. Como região geográfica e climática de transição, essas terras correspondem à economia pastoril e algodoeira do Nordeste. Assim, o que caracteriza no começo a atividade econômica do lugar é uma atividade de pecuária extensiva e culturas de víveres voltadas para o abastecimento das fazendas e vilarejos. O que se pode assinalar de culturalmente importante neste período são as tradições culturais de seus primeiros habitantes e donos da terra, os índios cariris, cujo principal traço psicossocial era uma permanente tristeza ou melancolia, que se expressava nas atitudes, nas músicas e danças e nos seus rituais. Essa região foi objeto de muitas caçadas por bandeirantes e aventureiros aos índios cariris. Sobressaindo-se a figura de Domingos Jorge Velho, como grande perseguidor e caçador dos indígenas locais, depois da campanha de Palmares. Da parte dos colonizadores, há que ressaltar a influência do catolicismo patriarca e familiar, que deixou suas marcas no assistencialismo, e a filantropia de Simôa Gomes em relação aos locais. A origem mesma do município deve-se a uma ação caridosa dessa donatária rural, depois que essas terras foram expropriadas pelo saque e a escravidão das nações indígenas. É de interesse notar que Garanhuns também foi reduto de quilombolas, negros escravos que fugiram de fazendas e engenhos e construíram redutos nas terras de Garanhuns, como o do Castainho, ainda hoje existente. Neste ponto, é possível reconhecer uma rica herança multicultural, formada pela contribuição dos índios cariris, sobretudo da índia, dos negros fugitivos e do colonizador português e seus descendentes.
O segundo período dessa evolução vai até a hecatombe de 1917, e coincide com momento de intensa urbanização do novo município. A chamada hecatombe pode ser interpretada como um grande conflito social e político entre senhores de terra, os coronéis rurais, que então mandavam na política da região e os novos senhores do comércio, dos serviços e atividades urbanas. Embora muitos desses coronéis fossem também comerciantes estabelecidos no núcleo urbano. A luta de famílias, tão comum no interior do Brasil, não deve obscurecer o significado mais profundo desse acontecimento. Tratou-se de uma grande ruptura no padrão dominante agrário e rural da política local, rumo à hegemonia dos coronéis urbanos, assentados na cidade, grandes exportadores, beneficiadores de produtos agrários ou comerciantes. Com a vitória desses últimos, a cidade ganhou um novo impulso urbanístico que coincide com a chegada de muitos estrangeiros, holandeses, sírio-libaneses, italianos, franceses etc., com a chegada da estrada de ferro e naturalmente com o estupendo crescimento da cafeicultura na região, em função do clima temperado, alcançando médias de 21 graus centígrados. O auge desse período se dá em 1936, com uma multiplicidade de jornais, grupos dramáticos, correntes políticas, teatros, orquestras, e um grande influência modernizadora sobre as atitudes, os comportamentos sociais, a fala, a roupa, o lazer, a ostentação de bens de consumo duráveis etc. A figura ímpar desse momento de exuberância social, econômica e cultural foi o engenheiro e animador cultural Ruber van der Linden. Homem dotado de muitas qualidade intelectuais e de curiosidade foi autor de inúmeras iniciativas importantes, como o parque ecológico, o grêmio cultural, os almanaques de Garanhuns, os primeiros esboços históricos da cidade e muito mais. Nunca mais a cidade experimentou um tal desenvolvimento cultural, a par do auge da cafeicultura e da influência modernizadora da infraestrutura urbana que ela trouxe.
MÁRIO LIRA E CELSO GALVÃO
Esse período se encerra com o golpe de 1937 e a chegada do Estado Novo em Pernambuco, através da interventoria de Agamenon Magalhães. Esse acontecimento provoca uma nova ruptura na história de Garanhuns, pela inaudita centralização política - trazida pelo interventor - e pela rede de apoio dos coronéis interioranos a Agamenon. Este é o período das intervenções municipais, prefeitos nomeados e indicados pelo interventor estadual, em função de suas alianças locais. Curiosamente, a cidade teve a sorte de contar com a ação de homens que foram empreendedores urbanos, embora a vida política e cultural tenha sido abafada pelo clima policial e arbitrário do regime. Nomes como Mário Lira, Celso Galvão e outros contribuíram muito para o desenvolvimento urbanístico da cidade, com grandes obras públicas, melhoramentos urbanos, novos bairros, parques, logradouros, avenidas etc.
AMARO COSTA E JOSÉ CARDOSO
Essa fase se conclui com a redemocratização, em 1946. Abre-se então uma época marcada pela disputa eleitoral e partidária e uma intensa ideologização da política, como aliás em todo o Brasil. Esse é o período do nacional desenvolvimentismo, com uma intensa mobilização de massas; de estudantes, trabalhadores rurais, operários, profissionais liberais, partidos políticos etc. Garanhuns foi sacudida pela tempestade política dessa época, com suas lideranças locais tomando posição a favor e contra os partidos nacionais e seus líderes. Aqui é preciso fazer justiça a dois nomes, o alfaiate Amaro Costa, corajoso líder comunista, que muito sofreu, e o deputado José Cardoso da Silva, do PTB. Outros renegaram suas antigas ideias e aderiram aos golpistas de 1964 para serem aceitos como pessoas de bem na comunidade e receberam benesses dos governadores indiretos. Estes dois valorosos políticos pagaram caro pela coerência doutrinária. Aliás, algumas lideranças sociais e políticas de hoje são originárias dessa época, como o vice-prefeito da cidade, antigo líder estudantil.
Chegamos, então, ao quinto período, que corresponde à vigência da ditadura militar no Brasil e a outro momento de extrema centralização político-administrativa. É a fase do bipartidarismo oficial e ou das sublegendas partidárias. A multiplicidade de correntes ideológicas foi eliminada e substituída por uma camisa de força de dois partidos oficiais. A vida política e cultural da cidade sofreu um enorme esvaziamento em função da censura, da centralização administrativa, do exílio e do absenteísmo de lideranças importantes. Os próprios colégios, a imprensa local, os grêmios estudantis e as igrejas deixaram de ser fontes de animação cultural da vida da cidade. A política passou a ser hegemonizada pelos novos coronéis urbanos, donos também de grande parte da riqueza produzida na região. O caráter acanhado das lideranças econômicas se reflete nas limitações culturais e políticas do município, até hoje sem representação estadual ou federal. Forasteiros e aventureiros empolgaram a vida política da cidade, fazendo carreira, primeiro de empreendedores, depois de lideranças políticas. Para isto muito contribuiu a influência cosmopolita da formação dada pelas instituições escolares e o conservadorismo das igrejas, produzindo uma emigração de jovens talentos e potenciais lideranças. Esse período foi marcado pela hegemonia de um partido único, a Arena, sendo sufocadas outras alternativas de participação. A única exceção foi o rápido governo de Souto Dourado, ligado ao MDB, advogado, vivendo fora da cidade há muito tempo, que fez uma administração voltada para a cultura, a recuperação urbanística da cidade, a moralidade administrativa e a valorização do serviço público, mas que não foi compreendido e valorizado pelos munícipes da região. Finalmente, chegamos aos dias de hoje. A consideração de um modelo político-cultural de uma cidade como Garanhuns não pode prescindir, primeiro, do processo de esvaziamento econômico e social da cidade, mascado pela extrema concentração de renda e monopólio da atividade comercial do município. A acanhada estrutura econômica da cidade pesa naturalmente sobre a riqueza ou pobreza numa estância hidromineral de vocação turística, com um calendário de eventos musicais anual, financiado e patrocinado pelo governo estadual, no bojo da centralização fiscal e tributária, e falta de autonomia administrativa em que vivem os municípios brasileiros, faz de Garanhuns uma região de vida cultural induzida e artificial, ao contrário, aliás, de outros municípios pernambucanos. É como se a nossa cidade não tivesse uma identidade cultural definida, bem marcada, a despeito dos inúmeros valores humanos e intelectuais, das faculdades, dos colégios, das igrejas, dos clubes etc. A cidade ainda é tributária de uma programação cultural hegemonizada pela capital do Estado e outras grandes cidades de Pernambuco.
Essa fraqueza pode e deve ser combatida primeiro por iniciativas da própria sociedade civil garanhuense, seus intelectuais, seus artistas, seus professores, seus líderes comunitários e religiosos. Ou seja, não se deve esperar do governo ou de outros essa valorização da autoestima da cidade. Mas isso só pode ser feito com o fim do cosmopolitismo estéril, vazio, empobrecedor das elites políticas e econômicas da cidade. Esse descompasso entre o papel descivilizador e descomprometido das elites e as nossas potencialidades locais é responsável por uma cultura de alienação e de pouco respeito e reconhecimento pelos nossos valores. A tarefa política e cultural de consertar tal desequilíbrio é de todos quanto almejem o desenvolvimento urbano e local redistributivo mais voltado para a recuperação da autoestima dos cidadãos garanhuenses. Há muito o que fazer neste terreno, é tarefa das faculdades, das igrejas, da imprensa, dos clubes, das organizações comunitárias, dos políticos, dos artistas, dos intelectuais, dos animadores culturais, do povo de Garanhuns, enfim.
*Palestra de Michel Zaidan Filho feita em novembro de 2001 no Centro Cultural Alfredo Leite Cavalcanti, dentro das comemorações do Centenário de Nascimento de Luís Jardim. Michel Zaidan Filho é garanhuense e Cientista Político.
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