quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

O Trem Maria Fumaça


Marcílio Reinaux*

Em alguns minutos estamos em pleno movimento nos sacolejos que me levaram telúrica e saudosamente à minha infância de  Garanhuns

Recentemente tive a agradável oportunidade de reviver momentos inesquecíveis da minha infância vivida em Garanhuns.  Em viagem ao sul, demorando-me um pouco em Campinas (uma das mais agradáveis cidades de  São Paulo), fui convidado pelo sobrinho, Dr. Antônio Carlos Reinaux Cordeiro, advogado militante, a dar um passeio no trem "Maria Fumaça". Um trem de ferro ali existente e em pleno funcionamento na Estrada de Ferro Campinas-Jaguariúna, um antigo ramal desativado.

Evidentemente o trecho não tem movimento de passageiros normais, sendo utilizados por turistas, na maioria das cidades vizinhas. O trem e todo o complexo de movimentação, é fruto de um esforço e um grande trabalho dos membros da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF) que fazendo os suspiros dos peitos de "coroas" saudosistas, todos os sábados e domingos, colocam 2 composições, cada uma com quatro ou cinco vagões nos velhos trilhos da ferrovia que se deslocam no trecho citado. A passagem de ida e volta é cinco mil cruzeiros, o que é baratíssimo para um  passeio, notadamente em levando-se em consideração que o trecho percorrido é belíssimo. Por entre alguns prados, margeando uma pequena floresta, o trem com a "Maria Fumaça" vai serpenteando, resfolegando, garboso e respeitado.

Fui num domingo com minha  esposa Gláucia, o dito sobrinho Dr. Antônio Carlos e o sogro deste, o amigo Sérgio. Foi emocionante, quase aventuresco. Chegamos à estação por volta das dez da manhã e a composição, uma BaldwinTen-Wheeler, de fabricação Americana procedente da Philadelphia pelos idos de 1912, com um resplante número 217, já bufava nos trilhos, pronta para a partida. Tudo funcionava direitinho: a estação, as bilheterias, as pessoas de terra, o pessoal do trem, tudo mantido pela Associação. Dá gosto ver o entusiasmo do pessoal trabalhando. Parecem crianças com seus brinquedos prediletos. Converso um pouco com o Chefe da Estação, que me presta várias informações. Com entusiasmo fala do serviço que está sendo prestado pela Associação à comunidade, no momento em que preserva as tradições envolvidas com uma das mais importantes páginas da nossa história com a epopéia das ferrovias brasileiras, rasgando os sertões, rompendo vales e montanhas. O Presidente da Associação, Patrick Dollinger, fundador da entidade, afirma que o maior mérito da mesma, é manter ocupados alguns antigos trabalhadores das ferrovias. Eles se encontram para longos papos, discorrendo sobre suas vidas e trabalho.

Aparecendo grupos de turistas, mediante módico contrato qualquer dia da semana, ou feriado, as composições funcionam e se deslocam no  trecho Jaguariúna-Carlos Gomes (Campinas), numa extensão de 27 quilômetros. O antigo ramal desativado, as estações, pequenas pontes tudo vem  sendo restaurado e conservado pela  Associação que tem apenas 340 associados, mas que recebe total apoio do Governo do Estado de São Paulo.

"Mingau" é o velho maquinista com que conversamos. Tem 65 anos, dos quais meio século dentro de  locomotivas. "Doutor depois que me aposentei" - diz ele - "não consegui me  afastar das máquinas". Por isso vim para a Associação para dar uma mãozinha. Nem penso em dinheiro; e só vontade de botar essa "bicha" para funcionar". E um largo sorriso se espalha no seu rosto protegido pelo surrado boné azul de fabricação inglesa, camisa de  "aviador" e lenço no pescoço. Passa a mão no arame do teto da cabine, o apito soa e ressoa alto e forte em obediência ao Chefe do Trem. Corri para  o primeiro vagão.

"Mingau" bota a "Maria Fumaça" para funcionar. Ela resfolega, solta jatos de escurecida fumaça, escorrega nos trilhos e devagar vai saindo. Em alguns minutos estamos em pleno movimento nos sacolejos que me levaram telúrica e saudosamente à minha infância de  Garanhuns. Lá adiante, cruzamos em outra estação, com o outro comboio que  voltava. O maquinista me lembrava o SEU ELIAS nascido em Palmares e um dos conhecidos da antiga Great Western; Andou a vida inteira às voltas com as locomotivas, fazendo ponto em  Glicério (hoje Paquevira), ora esperando a baldeação do trem vindo de Recife, ora o de Maceió, mas sempre indo para Garanhuns, cidade que ele adorava.

Fico triste só em pensar que aqui pelo Nordeste nada temos de Associação que tais. Lá no sul faz-se história, preserva-se à história e os valores físicos das instituições e organizações que contribuíram para o processo de evolução do País. É uma lástima este nosso Nordeste. Até o trem que tínhamos em  Garanhuns foi retirado; estações destruídas e destinadas a outros fins, embora nobres, como é o caso da nossa. Deixa pra lá as lamúrias. De resto ficou a lembrança do passeio no trem da "Maria Fumaça". Valeu muito, pois mexeu com as recordações do meu tempo de menino aqui em Garanhuns. (Recife, 18 de maio de 1985 | Texto transcrito do Jornal O Monitor).

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