quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Gestos simples


Além  dos traços de identidade cultural que ligam França e Brasil, a visita de Miterrand à pequena e histórica cidade de Tancredo, veio realçar ainda a  perfeita identidade entre os dois estadistas

Tinham ambos muita coisa em comum: uma longa experiência parlamentar; uma sofrida resistência democrática; uma quase obsessão pela Presidência da República; um acentuado gosto pela literatura e pelas artes; e um admirável culto pela amizade, que os levavam a gestos aparentemente simples mas reveladores de extrema grandeza para com os amigos.

Imaginamos o que tenha pensado um na presença do outro. Tancredo na frente de Miterrand: "Esse homem já disputou três vezes a Presidência da França, uma das quais contra o general de Gaulle, resistiu à ocupação nazista, e hoje governa o seu país". E Mitterrand, diante de Tancredo Neves, teria pensado: "Esse homem lutou mais de vinte anos contra um governo autoritário, e somente ele conseguiria chegar à Presidência através de uma eleição indireta - feita especialmente para derrotá-lo.

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E, assim, tanto as vocações comuns como as comuns dificuldades fizeram crescer uma admiração recíproca e uma funda amizade entre os dois. Estavam perfeitamente entendidos, perfeitamente compromissados. Mas só o destino poderia saber se voltariam a se encontrar novamente, depois daquela despedida afetuosa na casa de campo do Presidente francês.

Poucos dias depois de receber o Premier soviético, negando-se, inclusive, afirmar com ele um acordo em separado de desarmamento nuclear, o presidente Miterrand viajou do Brasil para atender ao convite que lhe fora feito pelo presidente Tancredo Neves.

Miterrand veio cumprir o compromisso que assumira com o amigo, já desaparecido, de visitar o seu País. Foi uma visita oficial de chefe de Estado, como não podia deixar de ser, com pompa e  protocolo. Mas, no fundo, foi mais uma visita ao túmulo de Tancredo, à sua família, à sua cidade de São João del Rey, e que se constituiu, por assim dizer, num  roteiro sentimental que emocionou a todos.

Na comitiva presidencial, poucas autoridades financeiras. Tancredo já expusera a Miterrand a situação do Brasil: sua dívida externa superior a 100 bilhões de dólares, sua inflação em 1984 atingindo 223%, o sofrimento do seu povo atingindo o desespero. Para que, então, ministros da área econômica na comitiva? Para cumprir um roteiro sentimental, abraçar e condecorar amigos, trouxe Miterrand, entre outras personalidades, o Ministro da  Cultura, um guerrilheiro aposentado (Debray) e um filho do escritor Charles Bernanos. Era o culto da amizade - traço comum nos dois estadistas - que deveria prevalecer na visita ao Brasil.

Sabia Miterrand como seria gratificante ao filho de Bernanos rever a terra mineira, onde o escritor estivera com toda família durante sete anos num quase exílio, naqueles dias terríveis da ocupação nazista na França.

Veja-se, por outro lado, o prestígio daquele escritor junto aos presidentes da  França: ao liberar Paris, o general de Gaulle apressou-se em convocar Bernanos para regressar à sua pátria; ao visitar o Brasil, Miterrand fez questão de trazer o filho escritor.

Evidentemente, aquela não foi uma visita de negócios de Estado, de cobrança a um País devedor à França de quase 100% da sua dívida. Foi antes, uma viagem mais sentimental. Miterrand ouvira de Tancredo que a nossa dívida externa não seria paga com o sacrifício e a fome do povo brasileiro. E  parecendo ter sempre em mente as suas palavras, o presidente francês as repetiu ao presidente Sarney, ao afirmar que "a consideração política da dívida externa não está ausente do meu espírito, por que não podemos brincar com a miséria e a revolta dos povos", e quando falou na Federação das Indústrias afirmando que "O pagamento da dívida não se resolve com o esmagamento dos devedores".

Para enaltecer Tancredo, não é preciso ir muito longe. A um deputado de Pernambuco - cujo irmão, perseguido pela justiça e pela policia, mas depois absolvido, e que ele acolhera na sua fazenda do Cláudio - respondeu há muitos anos, quando perguntado como estava "o meu irmão": seu irmão, não; ele agora é nosso irmão..."

Além  dos traços de identidade cultural que ligam França e Brasil, a visita de Miterrand à pequena e histórica cidade de Tancredo, veio realçar ainda a  perfeita identidade entre os dois estadistas, iguais tanto nas grandes decisões como nos pequenos gestos. E somente os grandes estadistas são capazes de praticá-los igualmente. Com toda a sua grandeza. (Texto de Luiz Souto Dourado (foto) |Advogado, escritor, foi prefeito de Garanhuns e deputado estadual | Recife, 7 de dezembro de 1985).

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