segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Revelações - Parte XVI


Luzinette Laporte de Carvalho*

Gostaria de dizer que há a outra face da vida, assim como há a outra face de nós-mesmos. De falar da dor, isto é, da alegria, como reverso da dor. Um dia todos nós teremos que descobrir esta realidade, ou permaneceremos sempre na metade da revelação. Todos nós.

Um dia saberemos que a alegria é uma forma sábia de olhar a dor, sua face a descobrir. Nada de masoquismo. Descoberta. Como se descobre a face do homem ou da mulher amada, para que não seja o amor uma ilusão romântica, mas uma verdade encravada na vida, no coração, na alma, no ser inteiro. Para que se seja. Não é fácil. É uma tenaz perseguição ao que vale. Doloroso corte nas facilidades. Caminhada em nossa própria terra estrangeira e desconhecida. Porém, enquanto se sofre sede, sabe-se da fonte. Enquanto se sofre, sabe-se do pão e do vinho. Do óleo / do leite / do mel.

Em todas as pessoas existe Canaã. Em todos há o sonho: a ânsia da pureza e da claridade, da ternura e do  encontro. Algo que calme. As pessoas não deviam procurar a dor ou o mistério do outro, tocá-los, senão como o sagrado. Jamais para profanar: seu núcleo de  mistério. Seu cerne do que existe além de. Tesouro que  a traça não corrói, nem o ladrão pode roubar. Chegar até lá é contrair a terrível condição de adorador e silenciar, acolher e defender. Não clamar a todos a habilidade de  alpinista, ou de mergulhador. Não se aproveitar para ferir.

Fico em meditação. Desfilam por minha alma as procissões de todas as vidas que vivi, de todas as mortes que morri. E são menos que um átimo. São a eternidade de vivo em cada instante. Esta angústia de tempo-espaço que jamais me deixou de torturar. Esta sede de infinito. Esta certeza do sempre. Este experimentar o sempre: mergulho vertiginoso nos tenebrosos desconhecidos meandros de mim-mesma, dos outros, da vida. de onde saio aprendendo a alegria, a qual para mim, desde o primeiro momento, nasceu em forte explosão. Na razão direta da dor, inversa do quadrado dos prazeres. Já nasceu completa. Estranha semente que brota em árvore. Árvore cósmica, cujas raízes se adentram nas nuvens. Alegria. Estranha árvore. Assim: rama o pecado, sangue e dor.

Eis que todos os rios começam a correr em direção ao deserto. Eis que os galgos saltam e ladram e param. Imóveis como só os galgos soem permanecer. O mistério está ali. Eis o cavalo selvagem. Orgulhoso de sua força, escava a terra com a pata, atira-se à frente das armas. Ri-se do medo, nada o assusta, não recua diante da  espada. Sobre ele ressoa a aljava, o ferro brilhante da  lança e o dardo; tremendo de impaciência, devora o  espaço, o som da trombeta não o deixa imobilizado. Ao  sinal do clarim diz: "Vamos!" De longe fareja a batalha, a voz troante dos chefes e o alarido dos guerreiros. Queda altivo e solitário, à espera. É a hora da revelação. Do  mistério. Rolam através da eternidade os sons da música do cantochão em glória. Imenso coral. Canta a litania desconhecida de muitos. Familiar. E cada invocação é  um chamado à vida, à caminhada, à luta, à vitória sobre a morte. Além das quedas todas. Sobre as limitações de todos nós.

Há muito que pensar e descobrir: a magia da vida:  instante por instante. Esta atração, este chamado, esta agonia, esta força, esta morte, este encanto, este desencanto, este sonho, esta realidade. Preciso me conter toda. Na vida. Nele. Desbordo-me. Preciso conter-me. Maior que o infinito que (pre) sinto vir sempre ao meu encontro. Compreendo o sempre: eu o abrigo em mim. Para que, quando necessitas, possas colhê-lo em tua  alma retalhada.

*Professora e escritora / Garanhuns, PE - 2000.

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