segunda-feira, 1 de julho de 2024

Borborema e seus discursos

João Marques
João Marques | Garanhuns

Quando ainda não era eleitor, eu prestava muita atenção nas campanhas eleitorais. Para nós, meninos, era mais uma festa de tempos em tempos. Os comícios tinham atração espetacular, como nos circos que duravam pouco tempo. Os retratos dos candidatos em preto em branco, espalhados pelas paredes, chamavam-me muito a curiosidade, porque não se pareciam com os verdadeiros rostos conhecidos. Nas fotografias, muito sérios e engravatados, davam uma aparência imponente. Essa imagem se desmanchava nos meus olhos, vendo-os nos cafés da cidade, à vontade, homens com cacoetes, comuns como todo mundo. Na minha observação de menino, era aquilo uma fantasia dos homens, como nos três dias de carnaval, quando os via novamente abraçados com os pobres, em plena euforia.

Não entendia porque eles se agrediam mutuamente, pois queriam todos trabalhar em benefício da coletividade. Os discursos longos e cheios de expressões já conhecidas. Achava graça em certos candidatos que falavam como se estivessem com raiva. Cuspiam o microfone e gesticulavam o tempo todo, até de punhos fechados. E o "Zé Povinho", os que se posicionavam bem perto do coreto, gritando "Já ganhou! Já ganhou!". Outros gritavam, em meio ao coro, "Reganhou! Reganhou!" Era como se fosse uma vingança...

Um bêbado, era engraxate, que sempre vivia embriagado e sujo de graxa, gostava de fazer discursos políticos pelas calçadas. Fazia-os bem! Muita gente parava, para escutar e sair rindo. Mesmo depois das eleições, ele fazia as falações, também longas e cheias de promessas. Ninguém se importava, se estivesse incomodando, porque além de bêbado o seu discurso era político. Era "Borborema". Figura popular, digno de figurar na memória, por seu jeito descontraído de viver, pela sua profissão de engraxar, mas sobretudo, pela sua voz de invejável diapasão. Punha-se no alto de uma calçada e, sempre abrindo os braços, repetia as promessas dos candidatos (muitas vezes já eleitos),  com as frases feitas do discurso comum a todos. O que era mais constante em "Borborema" era uma profunda admiração, mas que isto, uma grande fidelidade ao deputado Elpídio Branco. Quando estava muito bêbado, ficava a repetir continuamente o nome do parlamentar de Garanhuns: "El... pídio Bran... co!" A primeira sílaba, pronunciava de uma forma que só ele sabia. Um "EL" rouco, alto,  com eco. Só "Borborema"! Só ele pôde, como nenhum político daquela época, fantasiar os meus olhos de promessas. Hoje me lembro mais do bêbado. De Elpídio Branco, o charuto que sempre estava na boca. E o ambiente era o "Café Central". Noutro canto, "Borborema" falava e tomava cachaça. Lembranças que ficaram na urna de minha memória.

Eleitor, nunca mais fui a comícios. "Borborema" morreu. A televisão veio, acendendo as caras dos candidatos. A atração, agora, é mais tecnológica. Os candidatos continuam com os mesmos discursos... Mentem melhor, porque os problemas se multiplicaram e é muito mais fácil iludir os famintos.

Eleitor, eu voto, como o menino que fui, solidário   à esperança do povo. É tudo mentira, mas é possível que alguma coisa saia certo. Ou, quem sabe, nos tempos futuros, outras crianças assistam a campanhas verdadeiras, com novos discursos... Outros "borboremas" não estarão iludidos, como engraxates, falarão palavras novas e o discurso será de todos. Todos terão direito a urna, que  oferecerá casa, saúde, escola e comida.

Tem nada não, Borborema! A razão triunfará e o seus discursos serão ouvidos, lúcidos, como promessas legítimas de políticos.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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