sexta-feira, 18 de agosto de 2023

O jegue, este homenageado

Anchieta Gueiros - História de Garanhuns e do Agreste

João Marques* | Garanhuns

O jumento que só servia para carregar peso e, pela pouca inteligência, de troça e brincadeiras, ganha prestígio e é homenageado. No carnaval, a escola de samba carioca, Imperatriz Leopoldinense (1995), ganhou o título de campeã deste ano, cantando "Mais vale um jegue me carregam do que um camelo que me derrube lá no Ceará". Numa imitação burlesca da clássica sentença "Mais vale um pássaro na mão, que dois voando", o canto agradou e o animal de tradição nordestina, agora, é mais honrado. Os sambistas, habilmente, fizeram o tema irônico com a história de que D. João VI quis trazer camelos para o Ceará, importando o animal mais feio... Chegaria para substituir o mais burro? E o carnavalesco, malandro que não é "burro", reviveu a história, afirmando ser melhor ficar de jegue, do que  ir de camelo, bicho desajeitado a que o brasileiro não estava acostumado, e cair.

O jegue, que andou com seu prestígio abalado, sendo quase exterminado com a grande matança, ocorrida há pouco mais de dez anos, e o aproveitamento de sua carne em frigoríficos de charque, retoma, enfim, o lugar: o de "burro" trabalhador, sem direito a muita coisa, mas satisfeito.

O berro engraçado, parecido com uma grande  e espalhafatosa risada humana, é, no meio rural principalmente, imitado com gracejos pelas pessoas que querem fazer os outros rirem. Uns chegam até o exagero de dizer que o animal, quando dá seu relincho alto e longo, está anunciando a hora certa, como nas cidades, os relógios das torres e os sinos das igrejas... Os mais engraçados tiram o chapéu, como em sinal de respeito. No linguajar, há expressões corriqueiras como "Cara de Jumento sem Mãe", para dizer que certa pessoa não tem orientação; "Quando um burro fala, o outro murcha a orelha", para que se imprima respeito mesmo a uma pessoa sem maiores conhecimentos que fala...

No tempo em que andavam caçando o jumento, para os frigoríficos, houve já manifestações de protesto. As homenagens começaram, como reconhecimento do valor do animal nos trabalhos mais árduos. O "Coronel Ludgero" tornou muito conhecida a música que dizia assim: "Nascimento, eu não quero pagamento. Eu quero é outro rabo no jumento!" No Banco do Brasil, mais ou menos em 1969, eu trabalhando na agência de Garanhuns, soube-se numa tarde  que um prefeito de certa cidade do interior estava homenageando o animal com uma estátua, que mandara construir numa das praças do lugar. Por brincadeira, tentei fazer uns versos sobre o evento. Os versos correram de carteira em carteira, até que chegaram às mãos do poeta Dirceu Rabelo... Ele, quase de improviso, como legítimo filho de São José do Egito, fez outros versos, que perdi.

"Porque  julgou de  direito celebrizar um jumento, na praça o senhor prefeito mandou com muito cuidado lhe erigir um monumento. Como reconhecimento e sinal do seu respeito, devia agora o jumento levantar em seu cercado uma estátua do prefeito."

Um animal que não tem apenas a atenção do prefeito, da sociedade protetora dos animais, do veterinário... do padre, também. No Ceará, estado que acabou sendo mais do jegue do que o meu, um padre, Antônio Vieira, tem venerado este "herói" e "nosso irmão". O padre, como vi na televisão, pretende  que seja instituído o dia nacional do jumento... Como o dia da árvore, do índio já existentes. Sugeriria que pudesse ser vizinho do dia do trabalho ou do trabalhador. Ou, numa aquiescência geral, fosse incluído este dia  nas comemorações do 1º de Maio. A diferença dos homenageados é só que um é "burro", o outro é gente... contudo, muitas vezes, trocam de lugar, mas sempre sob a mesma carga. E se lhe institui o seu dia, o do burro, haverá de ser criado o seu sindicato. Um homenageado, com estátua na praça e tudo, com os cuidados zelosos d'alma de um padre até, não poderá ser mais um burro de carga qualquer.

Convenhamos, finalmente, que mais vale um jegue que me carregue a vida inteira, do que um camelo que não passa num fundo de agulha, nem lá no céu!

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

Créditos da foto: Anchieta Gueiros

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