quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Memórias do Monsenhor Adelmar Valença - Parte IX

Padre Agobar da Mota Valença

Tomei o trem, a 31 de março de 1928, num sábado chuvoso. Triste dia, triste hora da partida, triste viagem! As lágrimas de minha mãe! No Recife, ao chegar, hospedei-me na casa de Ponciano Reis, antigo sacristão e padeiro, em Garanhuns, quando eu era acólito e ele me obrigava a ir, todos os dias, buscar um pão e, como eu não tinha coragem de ir, ele mandava levar na minha casa. Morava em  Iputinga. Na segunda-feira, 2 de abril, tomei posse do emprego, como apontador, na Usina de Areias, com ordenado de 150$000. Fiquei morando em um quartinho, dentro do terreno da Usina, bem junto do muro, perto da linha dos bondes que passavam em frente. Quanta saudade daquele quartinho tão pequeno, tão mimoso! Cabiam nele, apenas, minha cama, a mesinha com a bolsa de viagem e outra, com a máquina de fazer café, xícara, latas etc. O café e a ceia eram feitos por mim; o almoço, fazia-o, pagando por mês, na casa de um outro empregado, de nome Batista, que me tomara para padrinho de crisma de um seu filho, Mário, que não tivemos tempo de crismar. Tirando as despesas com a comida e o lavado da roupa, quase nada sobrava, ficando, assim, impossibilitado de concorrer para as despesas de minha família, como sempre fizera em Garanhuns. 

Dom João Tavares de Moura - 1º Bispo de Garanhuns
Aos domingos, sozinho, sem querer fazer amigos, munido de uma planta da cidade, eu passeava muito, de bonde ou a pé, de modo que, em pouco tempo, já conhecia toda a cidade, com os nomes das ruas. Nunca perdia a missa aos domingos e, nas primeiras sextas-feiras, comungava. Ao cinema, não fui nenhuma vez. Fazia sempre a visita ao Ponciano e a Agobar, no Seminário. Passávamos uma hora inteira, falando de tantas coisas e mostrávamos, um ao outro, as cartas recebidas de casa, cartas que eram um bálsamo para nós. Adoeci de impaludismo. Era a primeira vez que adoecia longe de minha mãe. Só, então, pude compreender, claramente, quanta falta ela me fazia. Em vinte anos, em toda e qualquer doença, nunca tinha me faltado com os seus cuidados e solicitude. E, agora, eu mesmo havia de cuidar de tudo, mesmo que me abrasasse terrível febre, ou me estremecesse horrível frio. Quis voltar para casa. Reagi. No dia 22 de junho, fui buscar Agobar, no Seminário, à noite, levou-me para seu quarto, pois era teólogo, e trouxe lanche para mim. Fomos, depois, para o meu quartinho, em Areias. Fez questão que eu dormisse na minha cama;  ele, no chão, numa tábua. No dia 25, levei-o à estação. Veio para Garanhuns. 

Poucos dias depois, a 13 de julho, morre D. Moura, figura tão dentro da minha infância. Só no dia 15 é que vim saber da sua morte. Notícia que recebi com grande dor. No dia 30, fui esperar, no Porto, o seu corpo. Olhei-o duas vezes,  na igreja da Madre de Deus. No dia seguinte, acompanhei-o, no trem que saiu, às 13h30min, para Garanhuns. Viagem triste. Aqui chegamos às 10h da noite. Choravam crianças, moços e velhos. No meio da multidão, Alcina me viu. Correndo atrás de mim, chamou-me. E, apesar da tristeza da hora, vi, no seu rosto, a alegria por me rever. Pobre irmã, cuja vida tem sido um calvário de dedicação e de trabalhos, com resignada abnegação! Cheguei de surpresa, em casa.

Não há nada que se compare ao ambiente do lar. Não quis dormir, pois eram poucas as horas que passaria em casa e eu queria aproveitá-las bem, junto aos meus. Às 3h da tarde do dia 1º de agosto, voltei no mesmo trem especial. Agobar voltou, também. Viajamos no mesmo banco. Viagem bem triste, como a minha vida. À 1h da madrugada, como o trem não ia para Cinco Pontas, mas para a Central, ao passarmos pelo cruzamento a linha de bondes, em Areias, resolvemos saltar ali mesmo, com o trem em movimento. Saltei primeiro. Agobar, depois, sacudiu as bolsas e saltou, também. Meu quartinho ficava bem perto. De novo, fez questão de ficar no chão. Pela tarde desse dia, 2 de agosto fui levá-lo no Seminário. Continuei a visitá-lo aos domingos. Na Usina, escasseava o dinheiro, até para os salários. Já nos pagavam com sabão ruim, sabão que eu não tinha coragem de vender. Vento que era impossível continuar nesse emprego, escrevi a Ismael, que morava na Bahia. Recebi, a 9 de outubro, um telegrama, chamando-me. Despedi-me do emprego, no dia 13, e, no dia 14, à noite, fui despedir-me de Agobar. Era um domingo. Em baixo, na Praça, a música em retreta, contrastava com a angústia que ia na minha alma. Saí soluçando. Recebera dele muitos conselhos sobre missa dominical, páscoa, amigos. No dia seguinte, voltei, pedindo ao porteiro para entregar a meu irmão algumas coisas para casa: sabão e umas latas. O porteiro, sem que eu tivesse pedido, chamou Agobar. Foi bom. Novos conselhos, nova despedida. Desci aquela escada de setenta e tantos degraus e, embaixo, olhei para trás: ele ainda estava olhando para mim. Naquele dia, ele estava doente, magro e abatido. Uma carta que ele me entregou para botar no correio, era para meus pais; dizia sentir bastante a ausência do irmão a quem tanto estimava. Chorei muito. 

Fonte: O Diocesano de Garanhuns e Monsenhor Adelmar de Corpo e Alma / Manoel Neto Teixeira / 1994.

Fotos: Padre Agobar da Mota Valença. (2) - Dom João Tavares de Moura - 1º Bispo de Garanhuns

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