sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Com Arraes e Arroz

Miguel Arraes de Alencar

Última crônica de Luiz Souto Dourado antes da sua morte, homenageando seu colega de partido Miguel Arraes na vitoriosa campanha eleitoral de 1986.

És o Recife de hoje, com arranha-céus. Não a cidade cruel mas altiva. "O Recife das revoluções liberais" e dos pleitos populares. Com todos os partidos legais. Com Jarbas e Arraes eleitos pelo voto do povo. O Recife também das revoluções econômicas, com arroz e sal tabelados pela Sunab. És o Recife... "Rua da União, Casa do meu avô. Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade". Não acabou, está agora eternizada em forma de museu. És o Recife com o meu busto na praça. Duas imortalidades  gratas à minha sensibilidade de poeta, agora envolvida numa disputa eleitoral. Perturbaram o meu silêncio. Mas houve quem notasse que "um brilho novo está de volta" aos meus olhos de bronze.

Isto ai é plágio ou paródia, quase poema ou subpoema? Ou é uma tentativa de quem nunca fez poemas, ousar agora fazer um, justamente em cima - como se diz hoje - do poema maior sobre o Recife - aquele que Gilberto Freyre encomendou a Manuel Bandeira para a edição comemorativa do Centenário do Diário de Pernambuco.

Tudo porque o nome de Manuel Bandeira foi usado desnecessariamente na recente campanha política. E a política - sabe-se bem não tem entranhas.  Mexe-se até com os ossos e as cinzas daqueles que já morreram. Mas Bandeira - ao contrário do que disse na sua poesia "A morte absoluta" não morreu "de corpo e de alma". Complemente... Sem deixar sequer esse nome. Deixou nome, obra e memória, valores que devem ser preservados.

Ele foi, juntamente com Drummond, o poeta mais lido e querido da nossa geração. Líamos e até decorávamos muitos dos seus versos, e queríamos conhecê-lo pessoalmente. Em 1945, avistei-o de longe, numa frisa de teatro. Lembro também que  em 1965, levei para Bandeira o livro "A Face Despida" que lhe remetia o então jovem promissor poeta Gladistone Vieira Belo. Morava ele no apartamento defronte ao Aeroporto Santos Dumont, que lhe dava diariamente lições de partida, mas "deixando a mesa posta e cada coisa em seu lugar". Conhecia, por assim dizer, quase toda obra de Bandeira, contida no livro "Poesias Completas", editada pelo Americ Edit, da qual, é claro, não constava o poema utilizado pelas forças que combatiam a candidatura Arraes. Surpreendeu-me aquele disco, todas as noites. Homem simples e reconhecidamente bom, no poema "Testamento" disse: "Não faço versos de guerra / Não faço porque não sei / Mas num torpedo-suicida / Darei bom grado a vida / Na luta em que  não lutei".

Justamente na luta que não lutou, quando já dormia "completamente", fizeram de um verso seu (tão pouco conhecido) uma espécie de grito de guerra, de refrão na música governista contra o candidato oposicionista, no Guia Eleitoral. Até  uma voz antiga do antigo "Repórter Esso" foi chamada para ter velhas reportagens contra o Governo Arraes.

Mas a outra voz - a que recitava o poema de Bandeira - não me era estranha. Já e tinha ouvido muitas vezes, não lembrava de onde. Como é curiosa a nossa memória! Às vezes, lembramos a pessoas e esquecemos a sua voz; Às vezes, acontece o contrário; às vezes, perdemos de vista a pessoa e de ouvido a voz. Às vezes, perdemos de vista a pessoa e de ouvido a voz. Às vezes, reencontramos ambas, depois de muito tempo.

Aquela voz de Edson Nery da Fonseca era a mesma que ouvira tantas vezes nos corredores e na sala de aula da Faculdade de Direito: a voz das conferências no Seminário de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco; a mesma voz que lera de forma magistral o poema de Gilberto quando da comemoração dos quarenta anos da morte de Demócrito, na sessão do velho Diário.

Ele próprio, em artigo neste jornal, protestou veementemente contra a forma pouco ou nada ética do uso da sua voz naquele programa do Guia Eleitoral, confessando-se então um eleitor de Arraes.

Poucas vezes nos encontramos depois que Edson Nery deixou a Faculdade e o Recife. Ele esteve longo tempo no Rio e, ultimamente, em Brasília e voltou como escritor, crítico literário e também expert da obra de Gilberto Freyre. Encontramo-nos algumas vezes nos seminários do Instituto de Tropicologia da Fundação Joaquim Nabuco, e uma vez perto da nossa casa. Mas o encontro mais importante foi o dos nossos votos nesta última eleição. Ou melhor, o reencontro de dois jovens que não envelheceram, que continuam a ter vinte anos no seu idealismo, apesar das cabeças já encanecidas. O importante é justamente isto: envelhecer sem envilecer; ter sempre vinte anos em qualquer idade; não alugar a voz nem vender o voto.

Na hora do voto ("o nosso voto fez uma esperança a mais") o importante não é seguir pra frente e sim poder olhar para trás. Com coerência. Com dignidade. Como o fez a maioria do povo pernambucano.

*Luiz Souto Dourado / Ex-prefeito de Garanhuns, escritor e deputado estadual / Recife, 13 de dezembro de 1986.

*Última crônica de Souto Dourado antes da sua morte, homenageando seu colega de partido Miguel Arraes na vitoriosa campanha eleitoral de 1986.

Foto: Miguel Arraes de Alencar. Créditos da foto: www12.senado.leg.br

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