sábado, 19 de agosto de 2023

A Pipa

José Alexandre Saraiva

José Alexandre Saraiva*

Era domingo, início de tarde em Pinhais, região dos mananciais da Serra do Mar, estado do Paraná.

O garoto Benjamim viajava pelos ares, nas asas da imaginação, com sua linda - e já famosa no bairro - pipa azul, por ele mesmo projetada e montada pacientemente com as melhores painas que nasceram num matagal próximo do rio Iraí, ao lado da linha férrea. Esse era o local preferido de Benjamim para empinar sua magnifica pipa e também para responder ao aceno que o maquinista, velho amigo de seu pai, fazia sempre que passava com o trem cargueiro.

Mas a viagem de Benjamim tinha de ser interrompida... Naquele instante de alegria, de contentamento, surgiu um coleguinha seu, daqueles mal-educados, por certo invejoso também, e, num golpe rápido e certeiro, cortou com canivete a linha de náilon da pipa, só para ver no que ia dar...

Desgovernada, a pipa entregou-se, lá nas alturas, aos caprichos do vento e aos poucos foi desaparecendo por detrás de majestosas araucárias e imensos eucaliptos.

Demonstrando conhecer bem o estilo do vento que circulava naquela tarde ensolarada - não era agitado e tinha rumo definido -, no lugar de revidar a agressão do colega, Benjamim pôs-se a correr em direção ao local escolhido pelo vento para devolver sua estimada pipa azul.

E não era para menos essa estima, esse carinho. Além da obra de arte que era, custara-lhe uma semana inteira só para selecionar as painas e mais um sábado para concluir o engenho.

A vontade de ter de volta aquela pipa era tão evidente e justa que, de tanto correr, Benjamim já estava vendo a sombra azul de sua nave deslizando sobre a relva ressequida, a poucos metros de seus passos, aguardando a queda. Por coincidência, o local para onde o vento levava a pipa era o mesmo matagal que ele tanto conhecia.

Já ia cruzando a linha férrea quando, infelizmente, foi obrigado a parar: exatamente naquele momento, passava o trem cargueiro, com seus incontáveis vagões lotados de mercadorias destinados ao Porto de Paranaguá. Resignado, o único jeito foi esperar passar aquele trambolho comprido e, de tão alucinado que estava, sequer percebeu a tradicional saudação do maquinista, que, desta vez, acenou com as duas mãos, como se algo mais quisesse transmitir.

Enquanto esperava desaparecer o entrave, notou que do outro lado dos trilhos, onde já deveria ter caído a pipa, uma nuvem de fumaça que antes percebera sem contudo lhe dar atenção, porque estava num ponto relativamente distante -, tinha adquirido dimensões significativas. E apesar do barulho que o trem fazia, dava para ele escutar uns estalidos parecidos com aqueles que o mato faz quando é atingido pelo fogo.

"É uma queimada!" - pensou.

Sem saber realmente o que estava se passando, porque os intermináveis vagões obstruíam sua visão e a linha férrea ficava num plano superior do terreno, deduziu, afastando outras hipóteses que lhe vinham à mente, tratar-se mesmo de uma queimada.

O raciocínio de Benjamim, de fato, não estava errado. Tudo, aliás, levava a essa conclusão. Com a ausência prolongada da chuva e o sol ardente que fazia, um simples caco de vidro branco em meio a gravetos e folhas secas já seria o suficiente para provocar o fogo.

Assim que sumiu o último vagão do interminável trem, a densa fumaça ainda encobriu, por um instante, a trágica realidade que logo se estampou nos olhos ansiosos de Benjamim: tudo era chamas, confirmando sua previsão.

Aproximando-se o quanto pôde do sinistro palco, já com as roupas enegrecidas pela fuligem que escapava das chamas, em vão procurou localizar os restos de sua pipa azul ou ao menos algumas painas em pé para compensar a perda.

Estava tudo perdido!

Na manhã seguinte, um menino com os olhos cheios de brilho, diante das cinzas do matagal destruído, murmurava para si próprio: "Logo, logo, a chuva e o sol farão nascer novas painas..." - quando, sem esperar, viu aproximar-se o mesmo trem cargueiro conduzido pelo amigo, que retornava do  Porto de Paranaguá. Ao invés de cumprimentar o garoto, o maquinista, num súbito movimento, fez cair aos pés de Benjamim um caixote de papelão. Lá dentro, a pipa azul, intacta, protegida com pedaços de isopor, e um bilhete, escrito num cartão postal da Igreja Nossa Senhora do Rocio, dizendo assim:

"Encontrei no vão dos dois primeiros vagões. Só pode ser a sua raia."

*José Alexandre Saraiva é advogado, jornalista, músico e escritor.

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