Tu não mostras o coração
na face que me deixas ver
(Talvez o tenhas sedimentado
e fossilizado
os velhos sonhos
as antigas ambições
deixando-os ser só sementes
de sonhos acomodados
num canto frio
reservado
talvez por trazeres ocultos
tantos sedimentos
não me entendo imaginando
que ainda me faças
seguir te querendo)
por que tu não te me deixas ver
como quando ainda eras
e meu maior querer?
quem são teus novos quereres?
quem te ensinou a usar
a frialdade dos teus ares
como meio de defesa
do calor que te entregávamos
com alma e coração?
como poderei saber
se tua face pétrea
mudou como mudam
as imagens que a gente vê
de janela passageira
de um impassível trem?
o trem da greet western
(aquele que se foi
quando era mais necessário)
alimentava a carência de melodia
com seu apito choroso
sua cadência hipnótica
"danando-se" para fora de ti
- em direção aos canaviais
de palmares a catende
ou do engenho flor do bosque
guardando ascenço ferreira)
talvez o trem estivesse
louco para chegar ao mar
embora no outro dia
pelas sete da manhã
insistisse em regressar...
não te pude surpreender
na revista (fui eu
quem se surpreendeu...)
e, de tudo o que senti
do que tu me fizeste ver
eu só pude imaginar
um tempo que já não é...
(que pena que não me mostres
um pouco mais
do que eu esperava ver
- e que por certo guardas
atrás da indiferença
de teus olhares indecifráveis
e das tuas palavras cifradas...)
ainda me assalta a vontade
de saber o que ocultas
por trás das antigas venezianas
e dos (poucos) postigos coloniais
que surpresas guardarás
protegidas dos meus olhos
de filho ausente
nas esquinas por onde passei!
e onde estão teus cantores
teus poetas
teus (verdadeiros) amores?
não te mostras mais
aos meus olhares
cheios de sonho
deixa-me só
a viva recordação
de um tempo que eu pensava
seres para sempre
como uma rainha
generosa, acolhedora
com os braços sempre abertos
luz e riso pelo ar...
não creio que sejam pudores
que fazem com que te escondas
e despertes interrogações
- "por que este parar no tempo?"
- "por que esta distante cruel
de quem só te quer amar?"
para onde foi tua vida
estuante, colorida
que me fazia sufocar
o natural desejo da partida?
o frio que te reveste
não se presta ao aconchego
(serve mais para trazer
de outros corpos um calor
que não agrega e não se espalha
entre desejos de ficar...)
já não mais sei de teus segredos
e tuas ruas hoje cheias
de uma hostilidade calculadora (dolorida)
e de estranhos povoados
deixa-se ver sem emoções
mostrando-se indefinidas
bem longe daquele tempo
em cada casa
era como se fosse
a casa conhecida
ah, eu insisto, com tristeza
em te olhar
com o olhar da infância
embora não me devolvas
como eu o queria ter
por que tudo o que eu queria
do fundo do coração
era em meio a tuas praças
(todas elas a uma vez
- e incluindo as avenidas
com jeito de cartão postal)
abrir os braços
e abraça-las por inteiro
gritando alto, bem alto
- "deixa-me que te ame
e que me sinta amado!.."
(o menino que eu fui
não se reencontra
pacificamente
com o homem que hoje sou
e não se move
com facilidade
na avenida invadida
por marquises e camelôs
apesar de recortada
de lembranças infindáveis
de frondosos ficus-benjamim
tragados pelo progresso
do concreto impessoal)
tu, cidade minha, deste-te
à velocidade ingrata do tempo
deixaste no olvido o que era
para seguir vivendo
agora, falta pouco para que sejas
apenas uma cidade...
Créditos da foto: João Marques dos Santos
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