domingo, 30 de julho de 2023

Canção para uma cidade fria


José Gomes Sobrinho*

Tu não mostras o coração

na face que me deixas ver 


(Talvez o tenhas sedimentado

e fossilizado

os velhos sonhos

as antigas ambições

deixando-os ser só sementes

de sonhos acomodados

num canto frio

reservado


talvez por trazeres ocultos

tantos sedimentos


não me entendo imaginando

que ainda me faças

seguir te querendo)


por que tu não te me deixas ver

como quando ainda eras

e meu maior querer?


quem são teus novos quereres?

quem te ensinou a usar

a frialdade  dos teus ares 

como meio de defesa

do calor que te entregávamos

com alma e coração?


como poderei saber

se tua face pétrea

mudou como mudam

as imagens que a gente vê

de janela passageira

de um impassível trem?

o trem da greet western

(aquele que se foi

quando era mais necessário)

alimentava a carência de melodia

com seu apito choroso


sua cadência hipnótica

"danando-se" para fora de ti

- em direção aos canaviais

de palmares a catende

ou do engenho flor do bosque

guardando ascenço ferreira)

talvez o trem estivesse

louco para chegar ao mar

embora no outro dia

pelas sete da manhã

insistisse em regressar...


não te pude surpreender

na revista (fui eu

quem se surpreendeu...)


e, de tudo o que senti

do que tu me fizeste ver

eu só pude imaginar

um tempo que já não é...


(que pena que não me mostres

um pouco mais

do que eu esperava ver

- e que por certo guardas

atrás da indiferença

de teus olhares indecifráveis

e das tuas palavras cifradas...)

ainda me assalta a vontade

de saber o que ocultas

por trás das antigas venezianas

e dos (poucos) postigos coloniais

que surpresas guardarás

protegidas dos meus olhos

de filho ausente

nas esquinas por onde passei!


e onde estão teus cantores

teus poetas

teus (verdadeiros) amores?


não te mostras mais

aos meus olhares

cheios de sonho


deixa-me só

a viva recordação

de um tempo que eu pensava 

seres para sempre

como uma rainha

generosa, acolhedora

com os braços sempre abertos

luz e riso pelo ar...


não creio que sejam pudores


que fazem com que te escondas

e despertes interrogações

- "por que este parar no tempo?"

- "por que esta distante cruel

de quem só te quer amar?"


para onde foi tua vida

estuante, colorida

que me fazia sufocar

o natural desejo da partida?


o frio que te reveste

não se presta ao aconchego

(serve mais para trazer

de outros corpos um calor

que não agrega e não se espalha

entre desejos de ficar...)


já não mais sei de teus segredos

e tuas ruas hoje cheias

de uma hostilidade calculadora (dolorida)

e de estranhos povoados

deixa-se ver sem emoções

mostrando-se indefinidas

bem longe daquele tempo

em cada casa

era como se fosse

a casa conhecida


ah, eu insisto, com tristeza

em te olhar

com o olhar da infância

embora não me devolvas

como eu o queria ter


por que tudo o que eu queria

do fundo do coração

era em meio a tuas praças

(todas elas a uma vez

- e incluindo as avenidas

com jeito de cartão postal)

abrir os braços

e abraça-las por inteiro

gritando alto, bem alto

- "deixa-me que te ame

e que me sinta amado!.."


(o menino que eu fui

não se reencontra

pacificamente

com o homem que hoje sou

e não se move

com facilidade

na avenida invadida

por marquises e camelôs

apesar de recortada

de lembranças infindáveis

de frondosos ficus-benjamim

tragados pelo progresso

do concreto impessoal)


tu, cidade minha, deste-te

à velocidade ingrata do tempo

deixaste no olvido o que era

para seguir vivendo


agora, falta pouco para que sejas

apenas uma cidade...

Créditos da foto: João Marques dos Santos

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Arrebol da vida

Lauro de Alemão Cysneiros* Esse arrebol da vida, que me apanha Cheio de mágoas, cheio de tristeza, É o derradeiro adeus que me acompanha Na ...