João Marques | Garanhuns
No espelho, Marcos de Safo continua vendo o carnaval
A festa continua no espelho. Quando me aproximo, abalado ainda pelos acontecimentos desagradáveis, vejo-me de máscara. Uma folha verde, recortada, envolvendo o rosto. Ela se parte no vidro quebrado e se divide depois em muitos rostos. Todos, agressivos. Ora, o fogo incendeia as máscaras e, sem destruí-las, fica o verde em aparente combustão. O fogo, naturalmente, incrustado nas rachaduras provocadas antes pelas explosões. Degeneram-se, porém, e se transformam em mais faces satânicas. Daí, saem mais figuras a partir dos rostos grotescos, todas feias. Vestem roupas iguais às dos Bacanas. São os Bacanas. Nas mãos, dados de jogo, cartas de baralho, bolas coloridas e punhais. Dançam em círculo e dão gargalhadas, como tinha sido na rua. Não me contendo com a cena ridícula, chego a ameaçar o espelho, com gesto de levantar o punho fechado. Um deles parece Nicolau, porque passa sempre a mão na cabeça. Ao seu lado, aparece Helena, que sorri e dança. Vejo-a bonita, apesar do quadro horrível. Veste pouca roupa, tem um lança-perfume nas mãos, e lança, também, serpentinas ao redor. Imediatamente, me vem a lembrança da nudez. Uma pequena distração da inexistência. O brilho no vidro, de transparência onírica, dá passagem à reciprocidade sensual de Helena. E a nudez conhecida se mostra, no espelho agora, como quero ver. Entre os homens que a rodeiam, ela se encontra de saia muito curta. E, de costas novamente, exibe a bunda. Não é minha a mesma emoção, mas arregalo os olhos de ver outra vez a nudez. Nítida e real como antes. Nicolau, entretanto, num movimento da dança, fica entre Helena e os meus olhos. Vem mais agente, os mascarados, e a ocultam. Estremeço!
Senhorinha surge do outro lado e se aproxima. O espelho, agora, passa a refletir o seu rosto calmo. Quebra-se o desencanto. Ela aparece só, fora das cenas de antes, e pisca um olho, para me tranquilizar. A feminilidade se expressa na languidez do rosto. Sorri e fala, com gestos leves, iguais à brisa.
- As árvores estão festivas. Elas se alegram, quando todos estão contentes em derredor. Você me parece triste. O espelho reflete isso em suas divisórias. E eu me misturo a você, tão perto e tão envolvente como sou.
Fala calmamente. Saio do desespero em que me encontrava. E levo minhas mãos ao rosto, e procuro tocar Senhorinha, também. Emocionado, com as carícias que sinto, manifesto o amor que lhe tenho. Trato-a amorosamente, aproximando-me, como se fundem duas imagens. Intrínseco, tenho o seu corpo belo de mulher, que me completa. Mas as separações do vidro obstaculizam o laço. Com medo de perder, continuo falando, para mantê-lo perto.
- Você, Senhorinha, me tira da solidão. Toda a vez que a vejo perto de mim, fico contente. Nos momentos difíceis, aqui, você chega e se mostra sempre, como me vejo no espelho. É a porta por onde entra, para ficar presente. Seus olhos nos meus, apaixonados. Eu sei.
Falo até que se despede e sai vagarosamente. Faz sorriso, que me parece ficar entre aprovação e encorajamento. É muito meiga e elevada espiritualmente, como conheço. Às vezes, parecia brisa apenas. Outras vezes, é sólida igual a um monumento. Enternecendo-me, excita, pela aproximação do corpo de mulher. E fico tempo, lembrando o que se dá no encontro. É minha vida, na existência da Avenida. A Avenida viva, mulher bonita, como é o pedaço da paisagem refletida no espelho. E, daí, volta a refletir a paisagem. Máscaras e rostos feios desaparecem. Acaba o carnaval no espelho, também. Tudo são as mudanças na Avenida, das alegrias e dos sofrimentos. E refletem esses acontecimentos no vidro e no que possa ser em mim, de vidro também.
*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor. Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.
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