quarta-feira, 5 de junho de 2024

Alicinha

Hotel Mota, Garanhuns - Década de 1920

Dumuriê Vasconcelos | Garanhuns, 28/11/1981 

Perdeu Garanhuns, neste recem-findo mês de outubro, um dos seus valores mais destacados na literatura e na sociedade - faleceu, no Recife. ALICE SOUTO DOURADO. Ou Alicinha, como carinhosamente era conhecida. A triste notícia de sua morte não chegou ao meu conhecimento no devido tempo. Por isto não me foi possível comparecer aos seus funerais. Assisti, porém, à missa de sétimo dia celebrada pelo Padre Godoy em sufrágio de sua alma, em manhã ensolarada de domingo, na Igreja Nossa Senhora da Piedade, na Rua Capitão Lima, na capital pernambucana. O templo católico tornou-se pequeno para acolher parentes e amigos que em grande número, vieram prestar à extinta a sua última homenagem. 

Conheci Alicinha no ano de 1934, quando junto estudamos no Colégio 15 de Novembro. Naquela época, fazíamos parte da Sociedade Literária do educandário, cujas reuniões se realizavam às sextas-feiras.

Neste sodalício, ela se iniciou na literatura com trabalhos de sua lavra, que mereceram elogios de seus discípulos e do próprio corpo docente do colégio. Revelava-se progressista. Enquanto outras alunas declaravam sonetos de Virgínia Vitorino e Corina Rebuá, poetisas da moda, Alicinha já andava lendo os versos modernos de Manuel Bandeira e Adalgisa Nery. Escrevia no jornal do colégio chamado "A LUZ DO QUINZE", e iniciava a sua colaboração em outros jornais da cidade, com artigos que repercutiam no meio dos intelectuais. 

Um dia ela quebrou a quietude dos pastores evangélicos do Quinze, ao levar para sala de aula um livro de Marcel Proust. Nesse tempo, Marcel e Jorge Amado eram considerados autores imorais. Leitura de moça decente havia de ser as revistas "Jornal das Moças" e "Vida Doméstica". Ou livros tipo "água com açúcar" como os romances das irmãs Brontê, M. Delly e Cincórdia Merrel.

Mas Alicinha já lia Freud, Proust, Amado, Anatole France e outros "avançados". Vê-se que ela já estava muitos anos à frente das moças de sua geração. Digo até, que ela foi uma pioneira dos direitos de igualdade da mulher. Basta ver o artigo brilhante que ela publicou no "ALMANAQUE DE GARANHUNS / Ano 1936", editado pelo livreiro Félix Ruy Pereira, intitulado "O PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE MODERNA". Não possuo este artigo. Lembro-me do trecho final e o cito de memória. Ei-lo: "As sinhazinhas de hoje abandonam as almofadas de renda, os doces e os quitutes, o corpinho e as anquinhas, e vão às ruas fumar cigarros, dirigir automóvel, estudar balística o discutir Einstein". Confira, quem tiver o Almanaque. Alice Souto Dourado foi figura destacada em nossa melhor sociedade.

Depois mudou-se para o Recife. Era funcionária pública aposentada. Moça de fino trato, culta, inteligente e de comportamento exemplar. Amava Garanhuns com todas as forças do seu coração. Colaborou com o nosso jornal "O MONITOR", até às véspera de seu falecimento. Morreu solteira. Desconfio que os rapazes sentiam-se perturbados diante do brilho de sua personalidade. Disse um poeta que, quando virgem morre, uma nova estrela aparece no firmamento. Se isto for verdade, a estrela de Alice Souto Dourado dever ser a primeira magnitude.

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