quinta-feira, 2 de maio de 2024

Desaprender


Por Edson Mendes

Ainda sobre o todo, e o tudo, e todo mundo, e as partes, disse um dia Galileu que a terra gira em torno do sol, contrariando-nos a todos em nossa certeza de ser a terra o centro do universo. Condenamo-lo, herege, e o exilamos, magnânimos, com a pena do ostracismo em sua prisão domiciliar. No dia 17 de fevereiro de 1600, sem nenhuma magnanimidade, com pior sorte - mas em nome de Deus e em beneficio da humanidade, Giordano Bruno foi queimado, vivo, em cerimônia pública no Mercado das Flores de Roma, por defender a hipótese heliocêntrica de Copérnico.

Repudiar uma nova ideia, que se contrapõe à nossa verdade, é um comportamento basilar, e atávico. Persistir no erro, entretanto, não é apenas um paradigma, mas também um paradoxo, porque reflete o absurdo de nossa existência. Somos todos animais, sim, mas enquanto alguns de nós agem apenas por instinto, outros também pensam. Nestes, conhecidos como sapiens, a área reptiliana original do cérebro ainda coexiste com o córtex, responsável pela capacidade de reflexão, linguagem, julgamento e percepção, que nos facultam pensar antes de agir. E aprender. Por que não o fazemos?

Mais que um problema científico, trata-se de um problema comportamental. Errar é humano, dizemos. Persistir no erro também será? Somos incompletos e imperfeitos, mas evoluímos, e isso nos faz a cada dia diferentes, capazes de aprender, e desaprender, e mudar. Porque o homem não é o que é, mas o que não é... 

Nesse jogo de palavras, às vezes sem palavras, mas sempre um jogo, caminhamos aqui sobre as águas do mar incognoscível. Onde está o nexo com o todo, e o tudo, e todo mundo, e as partes? As mentes não se comunicam – mas um dia inventamos a palavra, e dai se tornou possível transmitir o que pensamos. Por este artifício as mentes se encontram, copulam e procriam. Nascem as ideias, o conceito, a crença, o crime, a pena, a fogueira. Mas também a duvida, o verbo, a prosa, o verso, a arte, o argumento. E a poesia – um pouco de luz no mar das certezas, onde as almas se encontram sob o sol do meio dia.

Se você não me conhece, mas me vê, dá-se o milagre: é este o fim. O poema precisa de quem faça, e de quem veja. Acende-se o fogo com as duas mãos. Fuzil e pedra. De que vale o fuzil sem a luz dos olhos?

Antonio Carlos Secchin nos adverte: “O poema sabe o que o poeta ignora. Se eu já soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai sendo ensinado enquanto escrevo”.

Paulo Gervais nos ilumina: “O esforço de fazer a linguagem capturar a experiência das coisas e dos acontecimentos é desde sempre da natureza humana: como quem carimba a própria mão na parede da gruta pré-histórica ou esculpe num pedaço de madeira a força misteriosa do mundo, a palavra tanto carrega em si o seu inventor quanto a sua experiência. Porque dizer a palavra é dizer o mundo na medida do homem, e a poesia melhor ainda o diz, porque quer dizê-la com palavras escolhidas, pedra desbastada até o miolo precioso, a joia rica, que se engasta num cordão de outras palavras até conseguir a melhor expressão. Não se inventam as palavras; elas são o nosso patrimônio. Por isso, qualquer poema é metade de quem faz e a outra metade de todo mundo; assim é possível que a nossa experiência, individual, com nome e autoria determinada, seja lida pelo outro, capaz de lembrá-lo que somos profunda e demasiadamente humanos.”

E eu, que nada ensino, nem advirto, nem ilumino, para findar esta peroração, que já é tempo, me junto a Borges e a Tonho, e por osmose, sendo símile, cumpro a síntese:

Borges disse que o gosto da maçã não está na maçã, nem na boca. Está no encontro da boca com a maçã. É impossível existir a Poesia, ou qualquer coisa, sem a cópula. As partes são impossíveis se não estiverem unidas e reunidas, tecidas. Mesmo as que se opõem, mesmo as que se atraem, medidas, desmedidas. A maçã não tem sabor, nem a boca. Mas quando elas se encontram nasce o sentimento, e a percepção, e daí o usufruto e a fruição – coisas mais importantes do que escrever e contar.

Sem argamassa, nenhuma obra se sustenta. Sem errar, nada se aprende. Desaprender, devemos lembrar, não é esquecer, mas a outra metade da fidúcia no processo de aprendizagem. O que lembramos como erro é, na construção do conhecimento, a sua matéria prima: pedra, e cal, e água, e barro. O que esquecemos, por desdouro, se repete – não mais como ventura, agora uma tragédia.

Na esquina do Juá, que, como todos sabem, fica lá perto do fim do mundo, Tonho me disse certa vez: “A segunda melhor coisa do mundo é aprender. A primeira é errar”.

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