quinta-feira, 6 de junho de 2024

A amiga a flor e a poesia

Garanhuns, Avenida Santo Antônio - Década de 1970

Alice Souto Dourado | Recife, 22 de agosto de 1981

De repente, sem avisar, ela apareceu em nosso apartamento. Chegou com seu sorriso bonito e uma braçada de rosas vermelhas. Voltava para rever uma velha amizade, (eu estivera doente) já um pouco distanciada pelo tempo, trazendo o calor de uma comunicação que sempre existira entre nós. Então os nossos pensamentos retrocederam no revolver de antigos momentos. Recordei sua generosidade quando aí, em Garanhuns, éramos vizinhos e ela me ofertava um jasmim de cera, - o único que abrira e dizia, - é para seu pai, Alicinha. Lembrei a poesia que nos enviara a continha na dedicatória os seguintes dizeres: as minhas amigas Souto Dourado, "meninas de Dona Alice". Eu jamais me esquecera dela da sua maneira de se dar e se integrar nas vidas das amigas. Era assim, Tercina, feita de suavidade e discrição. Despedimo-nos como se entre nós não tivesse havido um intervalo e, simplesmente retomássemos a linha da meada do tempo.

Regressou a menos de dois anos, a visita era para um doente amado que acolhíamos em nosso meio, doente heroico, desses que aceitam a realidade sem ressentimento acolhem a vulnerabilidade de suas vidas, silenciosamente.

Tercina, mulher simplicidade, inteligência e versatilidade, repleta de dedicação, vivida na gratidão.

Há poucos dias, de repente, resolvi vê-la. Fiz-me anunciar no seu apartamento à rua Santo Elias. Subi o elevador e diante de mim estava o seu sorriso simpático, sua presença afável.

Vivemos uma linda e estranha tarde de recordações e confidências. Relembramos o "Clube Feminino" que fundamos juntas, suas festas no "Esporte Clube de Garanhuns", o time de voleibol e as presenças de Regina Pinto com sua voz maravilhosa, cantando "modinhas" de Carlos Gomes; Carmem Carvalho e seu violino, as filhas do major Miranda e tantas outras moças da sociedade que movimentaram por certo período vida da terra. Os nossos concursos literários no mês de dezembro. Depois para minha surpresa falou-me de sua doença. Não estava apreensiva: O esposo queria levá-la as maiores clínicas cirúrgicas da Europa ou América, porém ela já tomara sua deliberação: ser operada aqui mesmo, confiava e era o bastante. Vendo-a disposta, corada, não senti apreensão nenhuma. Levou-me para conhecer seu apartamento, sua visão esplendida da cidade. Tudo tão simples, parecia que estávamos em nossa avenida, aí do Arraial. Dela ouvi coisas bonitas e nobres, pois era feita ou melhor construída sobre alicerce de dignidade, respeito por si mesma.

Despedi-me. Quis levar-me até a calçada de repente disse - vou ver minha irmã - quis dissuadi-la, chovia, mas insistiu e saímos as duas correndo sob a chuva que caia mais forte e de mãos dadas nos despedimos naquela noite de inverno.

Desaparece Tercina, criatura que fez parte da vida de nossa cidade. Insubstituível. Um ser único. Pois assim somos todos nós na face da terra; seres únicos com a marca de Deus.

Deixou um legado, - um livro para ser publicado e nele retrata a vida de uma professorinha nas suas andanças por longínquas cidades interioranas. Conta fracassos que transformou em vitórias, as necessidades e carências no exercício de sua missão de ensinar. O professor Costa Porto leu e gostou; é uma autoridade no assunto. Ficaria feliz em vê-lo publicado, seria ela a primeira escritora de minha terra, com o seu livro documentário.

Tercina Lima Silvestre, foi luz e acendeu tochas por onde andou no mister de alfabetizar. Numa pequena quadra deixou o retrato psicológico de alguém que me é querido; sabia se aprofundar nos meandros da alma, quando diz: "Arraial, menina linda dos olhos de um sonhador que se faz de bicho feio para esconder - seu amor". Como fala singelo e bonito sobre Garanhuns! E como naquela tarde falou com carinho em Juracy Calado, e, quanto ela falava sobre a amiga eu lembrava. S. Bernardo quando diz: "Não consideres amigo quem te elogia na tua presença".

"Mas o Mundo é uma empresa de Deus para criar criadores para unir a si seres dignos de seu amor" - Bergeson.

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