quinta-feira, 13 de junho de 2024

Sivina

Sivina

João Marques | Garanhuns, 15/05/1993

Treze de maio, uma data de liberdade no Brasil. Os filhos da raça negra, no século passado, foram dispensados do trabalho escravo. Passaram os negros ao trabalho remunerado, (ficando sujeitos aos baixos salários). Ficando condicionados às restrições sociais e tantas outras formas de submissão, mas foram libertados das senzalas e das perseguições nas fugas. O maior benefício veio com o desenvolvimento da cultura negra. Livres, puderam manter as tradições de culto, de cozinha, de divertimento, enfim, uma cultura que se definiu. Uma cultura que influencia às outras culturas, e se torna forte a ponto de, muitas vezes, prevalecer às outras formas de manifestações.

CASTRO ALVES

Não resta dúvida, considerando o acervo cultural da Bahia apenas, que o negro vem conquistando, no Brasil, a liberdade definitiva, através dos costumes e de uma filosofia própria. Felizmente, não acontece perturbações que viessem a título de impedir este desenvolvimento, não havendo, como se considera, racismo em nosso país. Incompatibilidades leves acontecem e não  pode deixar de ser, frutos do atraso da humanidade, resultado de uma civilização que caminha ainda a passos lentos.

Um passado de sofrimento faz com que o negro seja  mais forte, digamos, ao tocar do tambor, suando mais, pulando mais alto, gingando bem. Eu olho para o negro de forma especial. Me lembro do passado e de tudo que se alinha a sua sobrevivência: trazido, nos porões de navios, da África selvagem. Me lembro dos abolicionistas, de Castro Alves... Quando era pequeno, assisti pela primeira vez a um drama num circo, história de escravidão. Um feitor, um capitão de campo, um senhor de escravos, uns escravos, um chicote... Aderi prontamente ao abolicionismo e festejei, com muita alegria, ali no circo, a libertação dos negros que apanhavam. Suspirei de emoção com as poesias de Castro Alves e, mais recentemente, acompanho a novela  Sinhá Moça, na Globo.

CHICA PASSA BEM

Como nasci no sítio, conheci melhor alguns negros, afeitos ao trabalho do campo. Trabalhavam para o meu pai ou apareciam na porta, pedindo alguma coisa. Não eram mais escravos, eram descendentes humildes, com todos os traços de seus ancestrais. 

"Chica Passa bem" era uma negra forte, falava alto e ria também alto. Me botava nos braços e me chamava de "Joãozinho". Bem humorada, trabalhadeira... Nunca esqueci dela...

"Sivina", ao contrário, não trabalhava nem era alegre. Tinha tudo da raça. Aparecia sempre e, como já tinha liberdade, entrava e ia sentar-se num canto na cozinha, ficando a espera de um bocado, para satisfazer a fome. Falava muito engrolado e os  sons que emitia eram iguaizinhos a fala das velhas escravas que não falavam ainda o idioma português. A intuição que eu tinha era assim: ali estava uma escrava, sofrida, de banzo e tudo, que, misteriosamente, sobrevivia. A minha mãe, que falava a linguagem da caridade, a entendia e, depois de alimentava, levantava-se do chão e, aos tombos, coçando-se ia pelos caminhos, perdida, longe de suas terras. Diziam que tinha mais de cem anos, morava com uns parentes distantes, era mais agregada que da família. "Sivina" morreu, faz uns vinte anos. Penso que nunca conheceu a cidade nem nada da civilização. Por isso, um dia, porque tinha uma máquina fotográfica a mão, resolvi tirar-lhe o retrato: o único de sua vida. Botei um tamborete no terreiro da casa e conduzi "Sivina" pelo braço, ela assustada, mas não podia correr. Foi difícil e longa a espera, para conseguir que ficasse sentada no tamborete, só sabia sentar no chão. Consegui a foto e está aí sendo mostrada, embora pouco nítida, como foi realmente a sua vida.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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