quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

euHerói - Capítulo 2


João Marques* | 
Garanhuns

Nota do autor - Publicação mensal neste jornal, por capitulo (63). Inicio: janeiro de 2024. Romance inédito, não publicado em livro, por falta de condições do autor.

Da reciprocidade e das adversidades entre o personagem e a Avenida

Começa o livro. Entro nele, como dentro de um baú mágico. Essa interiorização me faz incorporar o personagem e mover as coisas. É meu corpo estendido, no caso, ao longo da Avenida. Mas importa-me sobretudo a verticalidade, como da página, da letra levantada e do traço de exclamação acima do ponto. O corpo presente na dimensão de tudo, do existente e do inexistente. Do que nem sempre dá conta a percepção. Sobressai-se e é alguma coisa, sem eleger definições. O que pode ser, para se conter na Avenida. E há o que seja mais indefinível?... Assim, reparto-me, para caber como posso no capítulo que fala de flores ou de espinhos. Busca da razão de ser ou não (ser não), pela filosofia entranhada. E nomeio o que penso, para dizer e ter, e dar consistência ao corpo. A intenção é da mão que escreve mais, pela própria mão, pelo livro e por quem lê. Os personagens representam a existência e, menos in- tensos, a inexistência que possa caber na razão. Limeira, parado num canto, desaparece, mas consigo, ainda, ver algo como o nada em monumento. Alguma coisa, com nomeação e inexistência notável. A intenção do que escrevo e a intenção de quem lê são diferentes no tempo e no espaço. Presente, vivencio e cuido da Avenida, da minha intimidade. Ela me inicia e complementa. O leitor fica vendo o que passa, diferente. Espaço e intenção são de que tudo possa ser compreendido no dia, inteiro e único no conto.

O cassino. Cartas de baralho e dados da sorte, que é decidida também pelas roletas. E é excedida a fortuna pela má índole dominante. Não conta a sorte apenas. Os Bacanas, os senhores do cassino, manipulam o jogo e acertam sempre. É como querem, mandam na sorte, a deles e a dos outros. E muitos jogos e tramas concentram-se no cassino. O18lugar é sinistro. Não é o que deveria ser em lugar nobre da Avenida. Paro na calçada da frente, e fico à espreita, para entrar. O paredão frontal não é atraente. Janelas acima com a pintura desgastada. Nunca vistas abertas. Tabuleta sobre a  porta  do meio, com letras grandes. Café Boa Sorte. E mais abaixo, em sinais menores: Aberto Dia e Noite. À porta, dois homens vestidos de preto, guardando a entrada. Apesar da placa de café, o aspecto sombrio e a presença dos homens indicam a reserva do ambiente. Quem entra, só para tomar algum café, surpreende-se com a sofisticação.

Entro. Sala ampla com cortinas vermelhas nas janelas. Lustres com muitas luzes sob o forro de madeira, pintado de amarelo. As mesas cobertas com pano verde à moda da mesa de bilhar. Gente jogando ou, em pé, conversando e observando os que jogam. Um homem já velho em pé à mesa de jogo. A roleta é atrativa e gira fazendo barulho metálico. Movimento do eixo e da paleta passando pelos grampos que separam os números. O homem velho faz as apostas, marcando quatro ou cinco números. Emoção nos olhos e nas mãos. Entrega-se todo, de toda existência, como numa aventura decisiva. Vivencia parado ali um drama, seu envolvimento entre tantos, da Avenida. Pelas paredes, litografias com mulheres nuas mostrando o corpo discretamente. E, na parede do fundo, quadro mostrando três mulheres bem vestidas, de chapéu, segurando cartas de baralho em redor de uma mesa. Mesas e cadeiras espalhadas num canto do salão. Duas garçonetes vestidas a rigor, de avental curto e boina branca. Mais atraentes aos olhares são os degraus entapetados da escada larga, que dá acesso ao andar de cima. Ao pé da escada, um aviso bem à vista: Reservado.

Sala ampla e especial dos Bacanas e dos convidados, para o jogo de maiores lances. Desconfio de cometimentos fora da lei. Organização criminosa que, camuflada, promove a destruição. E o interesse em tudo é surrupiar. Observo tudo ao redor. Os comparsas estão sempre juntos, em grupos. Bem vestidos, chapéus de abas curtas, gravata, paletó mostrando a ponta de um lenço no bolsinho superior, sapatos em duas cores, branca e marrom. Olham para todos os lados, atentos, e mantêm gestos combinados, como senhas. Embaixo, tenho vontade de ir conhecer o "reservado". É arriscado. O interesse que tenho é descobrir o que fazem. Ir é arriscado demais. Eles não podem saber nada sobre mim. Tenho de assegurar que nada descubram. Tudo há de ser feito com fidelidade à Missão, que me preserva para a tarde. Preciso de um meio seguro, para não ser visto. Penso, então, ir em pensamento e à vontade. Posso ter conclusões importantes. E sinto que vou subindo a escada leve e invisível.

Mesa grande com cadeiras ao redor. Duas menores para o jogo de dados. Duas roletas com luzes sobrepostas. E outros móveis menores. Um retrato grande de Napoleão na parede, atrás da mesa. E bem à altura do alto da cabeça de Napoleão, um lustre de muitas lâmpadas e pesado. Homens sentados ao redor da mesa. Não jogam. Conversam sobre um plano de contrabando que vai render uma soma vultosa. E pensando, antes que me vejam, vou esconder- me no banheiro contiguo à sala. E de lá escutar o que tramam. Um homem com defeito no olho direito é quem comanda. Combinam entre si plano de como receber a mercadoria que chega pelo trem, e um meio de esconder. O esconderijo, na Avenida, é a caverna. Penso.

Não há lugar mais seguro. Assim, também, é o que pensa o homem defeituoso da vista.

Um homem se levanta e vem para o banheiro. Apavoro-me. Descubro imediatamente uma cortina de plástico azul separando o espaço para banho de chuveiro. Escondo-me atrás da cortina e fico abaixado e imóvel. O intruso entra. Meu medo aumenta. Mas, antes que me descubra, em pensamento saio. E ele não me vê. Volto, invisível, e me retomo na sala de baixo. Meu coração está apressado. Olho em volta, para certificar se alguém me observa. Nada. O susto é grande. Saio em definitivo, assustado. Considero que a realidade da Avenida e a imaginação andam muito mais próximas. É só questão de ir e vir. E tudo se oculta na realidade dos que caminham visíveis ou não.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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