quinta-feira, 24 de agosto de 2023

O último par (conto)

João Marques dos Santos

João Marques* | Garanhuns

Maviael vestia-se, com capricho, duas horas antes da festa. O terno já era velho, tá certo, mas que lhe  ficava bem e, vestido, tinha lembranças da primeira vez que usou. Meses longos, ano, quanto foi ao Baile da Primavera. Não era, agora, a mesma festa. Preparava-se para o Baile da Saudade. E, com efeito, o mesmo terno, novo então, da primeira vez, quando conheceu Armanda. Não foi o primeiro beijo que teve, foi o mais prazeroso. Beijado, abraçado, apertado, e mais , com a aproximação, o calor do rosto de Armanda. Ao dar o nó da gravata, lembrava que aqueles delicados dedos de mulher, na dança, elevavam-se à sua gravata e cuidavam de corrigir a posição, puxando um pouco para os lados. A gravata, azul, agora, era outra. Lembrando-se, procurou deixá-la bem, o nó de boa conformação e altura ideal da gravata, atingindo de leve o abdômen. Tudo de boa compleição.

Pensava como de outras vezes e ria do absurdo do destino que interferiu em sua relação com Armanda. Ela o deixou, quando foi morar longe, com uma irmã que ficou viúva. Que tinha haver com a morte de uma pessoa que nem conheceu. Viajou e, embora tivesse correspondido à sua paixão, não deu mais notícias. E via-se infeliz, considerando duas fatalidades. Uma, a partida de Armanda repentinamente. Outra, pior e mais repentina, a morte, também, de Armanda. Logo depois que passou a morar com a irmã, contraiu uma febre e não resistiu. Um grande golpe do destino, como apregoam os perdidos.

Chegando, o baile começava, muita gente, amigos que o cumprimentavam de longe. Maviael parou à entrada, observando a decoração do clube. Papéis coloridos e pinturas. Pequenas frases alusivas à saudade. Versos e figuras de casais apaixonados. Maviael ficou logo inteiramente dominado  pelas lembranças de Armanda. E, entregue à paixão, entrou no baile, vendo Armanda em qualquer lugar para  onde olhasse. Como se ela estivesse presente, sentia, escondido, prazer de sua suposta companhia. Encontrava-se efetiva e sentimentalmente no Baile da Saudade.

Maviael dançava bem e, jovem, atraia os olhares das moças. Sem interrupção na noite, dançava com todas, uma era enlaçada pelos seus braços, com demonstração de cavalheirismo e de afeto. No baile, ele formava o mais belo par com quem dançasse. Não teve tempo para os amigos. E se tornou notória a sua entrega. Sem demonstrar cansaço, rodopiava aos diversos ritmos da orquestra. Antes, Armanda dançava bem como ele e insistia sempre em ficar mais tempo no salão. Bem vestida, os cabelos longos, os lábios largos, uma mulher de corresponder a uma grande paixão. Educada, de hábitos finos, fala pausada e elegante. E Maviael, de tanto amor, delirava ensandecido de tê-la em seus braços.

Com Maviael, o tempo dançava também, e, pela lassidão, começou a virar manhã. Apagando-se  as luzes do salão, a claridade do dia  entrava pelas janelas abertas. As pessoas saíam. Muitos casais abraçados. Os músicos se recolhiam, também, guardando os instrumentos em estojos e caixas. Maviael, entretanto, ficava ainda no salão, dando continuidade à festa. Como se fizesse um par com alguém, mantinha os braços erguidos, no espaço. A mão esquerda espalmada nas costas de uma invisível. Os passos corretos, obedecendo a um ritmo inexistente também. Os últimos retirantes paravam ou voltavam a cabeça para olhar. Maviael ia e vinha ao longo do salão. Um músico, apreensivo, retomou o violão e começou a tocar uma valsa. Maviael passou a dar passos largos e elegantes. E, de vez em quando, pelo movimento dos braços, girava a dama. No rosto, mostrava a satisfação que tinha. Experimentava grande contentamento, pelo  sorriso mantido. Sobrava-lhe a saudade  e a festa. O tempo teria  parado num canto, para observar. O músico, que tocava sozinho, expressava nos olhos um brilho intenso de piedade. A lembrança imensa movia o corpo de Maviael, como se, de mãos dadas, dançasse pelo último par.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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