Sítio Aguazinha, Iati - PE | Dezembro de 2019 | Créditos da foto: Anchieta Gueiros |
Cariri deixou o velho Anselmo às portas da morte, com a recomendação de que fosse e voltasse ligeiro, porque - ninguém nunca sabe - a "hora" pode chegar a qualquer momento. Para melhor certificar-se, pediu licença para entrar e foi olhar o moribundo. Realmente, como disseram, "Seu" Anselmo já estava com o fôlego da morte. Vela e caixa de fósforo pertinho e, para reforçar mais a seriedade, um choro de mulher lá para dentro de casa. Desceu a serra montado no cavalo mais ligeiro da fazenda. Cariri, porém, não gostava dele. Já havia caído da sela três ou quatro vezes.
- Cavalo traiçoeiro, dizia, quando menos se espera, o bicho pula mais veloz do que uma bala.
Entre a fazenda e a cidadezinha mais próxima, havia nove quilômetros, sendo cinco de serra, por uma estrada antiga, que não prestava para o trânsito de rodas. Naquele dia, já era a tarde e se preparava muita chuva, pelo vento intenso e baixas que já escondiam quase a totalidade do sol. Cariri e cavalo, numa viagem rápida, chegaram à cidade em cerca de quinze minutos. Dirigiram-se à casa do padre.
- Oh!... de casa!!
Apareceu à janela uma velhota, com ares de quem se encontrava muito ocupada na cozinha.
- O que é?
De cima do cavalo, com voz alta, o portador do recado falou.
- "Seu" Antônio... A senhora conhece?... Filho do velho Anselmo, que está nas últimas, mandou eu vir buscar o padre Mateus, para confessar o doente.
- Ele não está!
Respondeu a mulher, arriscando uma olhada para o lado da igreja, que ficava perto. E, em seguida, acrescentou:
- Vem aí!
Voltou a cabeça em direção a Cariri e perguntou, assustada:
- Esse homem não já morreu não? Você mesmo não já veio buscar o padre outras vezes?
- Morreu não!
Responde à mulher, que foi entrando novamente para casa. Porque o padre se aproximava, foi apeando-se.
- O que é?
Foi logo perguntando o padre.
- Boa tarde, padre Mateus...
"Seu" Antônio mandou eu vir buscar o senhor...
- Já sei! Interrompeu o padre, como que aborrecido. Anselmo quer morrer de novo!?
- Desta vez, é sério, padre! Eu vi que ele está só respirando.
O senhor pode acreditar.
O padre, cabelos brancos e jeito de muito cansaço, pôs-se a pensar, refletindo notadamente sobre a decisão de ir ou não para a confissão do doente. Olhou para as nuvens de tempestade, olhou para o cavalo e, disfarçado, comentou:
- Este cavalo está muito suado. Você veio correndo... Como é que volta a pé, com tanta chuva que vem!? Cariri ficou calado, enquanto examinava, também, a chuva que estava para chegar. Ficaram, por pouco tempo, os dois em silêncio... Cariri, entretanto, resolveu dizer alguma coisa.
- O senhor é quem sabe. E se o homem morrer...
- Ele espera! Gente velha como o velho Anselmo só morre quando quer! Foi a resposta do padre em tom bem humorado. Em seguida, dirigiu-se para a casa, apressado, recomendando a Cariri que esperasse. Mal havia entrado, deu-se inesperadamente uma grande explosão no espaço, depois de um clarão assustador. Cariri estremeceu e viu, em seguida, quando o sacerdote botou a cabeça por uma janela e examinou mais uma vez o tempo. Mais dez minutos, voltou o padre com alguma coisa nas mãos, dizendo:
- Que trovão! Você viu?
Cariri olhou para o que trazia nas mãos sem entender qual era, agora, a intensão do padre.
- Bom!... Disse, em voz de pregador, e continuou no mesmo tom seguro e explicativo. Não vou, desta vez! Resolvi não ir, porque, como vê, vai cair uma grande tempestade e, demais, encontro-me muito cansado de tantas obrigações que, graças a Deus, pude já hoje cumprir na igreja. Leve isto aqui! O velho não morrerá sem Deus! Que pecados tem um homem já no fim da vida? E mais: Já o confessei duas vezes só este ano... E, enquanto passava às mãos de Cariri uma caixinha de madeira, bem fechada, amarrada por cima com barbante, fez esta recomendação:
- Leve isto! Mas, veja como leva! Está bem amarrada para evitar que se perca o que vai dentro e para que não se molhe com a chuva. Vá em paz! Siga com Deus!...
Cariri ouviu bem as palavras, montou o cavalo e partiu, conduzindo-a caixinha, bem agarrada, sobre a sela.
A chuva estava prestes a cair, o cavaleiro, sem esporar o cavalo, ia devagar, para dar tempo de pensar melhor no que poderia haver dentro da caixa. Lembrava-se das recomendações, do jeito sério de falar do padre e, sobretudo, de haver dito: "Vá em paz... Siga com Deus". Cariri poucos conhecimentos sobre a sua religião, contudo, sabia que os padres dizem que Deus está na hóstia de comungar. Tinha visto, nas outras vezes em que o padre foi, como tudo era tratado com muito respeito e as repetidas vezes em que as pessoas de casa se benziam, fazendo o sinal da cruz. Conclui, com muita surpresa, que o que levava naquela caixinha tão bem protegida, era uma hóstia, para o velho Anselmo comungar antes de morrer, já que o padre não pôde ir, como das outras vezes.
Cariri era um homem negro, descendente próximo de escravos que serviram na fazenda onde ele morava. Sabia as história de seus avós e se orgulhava de suas origens. Negro forte, Cariri tinha muita disposição e, como é óbvio, era muito obediente.
Pouco havia se distanciado, quando irrompeu a grande tempestade, com relâmpagos e trovões. Cariri, de início, deixava que o cavalo andasse apenas. Temia ir ao chão e derrubar a caixinha. Como a chuva cada vez mais aumentava, os relâmpagos abriam e fechavam, com pouco tempo de intervalo, se viu obrigado a abandonar o cavalo. Logo depois da cidade, no primeiro sítio, deixou-o numa estribaria, dizendo ao homem encarregado naquele sítio, que ia voltar no outro dia, para levar o animal.
Ainda não era noite, mas as chuvas escuras haviam obstado a claridade do sol. Os relâmpagos, em extensas faíscas, cortavam os céus e iluminavam o caminho por onde as águas desciam, serra abaixo, afogando os sapatos do viajor e o empurrando para trás. Cariri, entretanto, se encurvava para a frente, vencendo a força da enxurrada, o vento forte e as dificuldades da subida. O cuidado concentrava-se, contudo, mais nas mãos que nos pés. Guardado no interior da caixinha, pensava, estava uma coisa que significava muito. Se merecia o ajoelhar-se dos homens ricos e do próprio padre, o que não podia ele, Cariri, fazer para que caísse na enxurrada?! Tropeçava de vez em quando ou pisava de supetão em um buraco, mas não caía e apertava a caixa contra o seu corpo molhado, como se estivesse amparado por bondosa e invisível mão. Quanto mais eram os relâmpagos e os trovões, cariri marchava com valentia e muita coragem, pisando com força e sacudindo água para os lados. Nada ruim pode acontecer comigo, pensava Cariri. Não é maior que a tempestade o seu senhor?! Ele está aqui e eu com ele sou mais forte do que toda esta chuva... Assim, alcançou o topo da serra e, enquanto ia vencendo a pequena distância que faltava, as águas foram pouco a pouco cessando. Havia, ainda, àquela última hora da tarde, a luz fraca do sol, que permitia a algum observador, estando à margem da estrada, ver o estado desanimador de suas roupas e de seus sapatos e, de forma muito contrária, o ânimo inequívoco que pairava no rosto moreno de Cariri.
Quando ia chegando à casa, avistou logo o "Seu Antônio", que se encontrava em pé, no terreiro, como a esperá-lo.
- O padre não pôde vir desta vez! Mandou esta caixinha...
- Meu pai está melhor!
Tomou-lhe a frente o "Seu Antônio", falando com voz alegre. E, antes que Cariri desse mais explicações, contou que, no primeiro trovão, o velho caiu da cama e, com a ajuda de algumas pessoas, levantou-se e não quis mais ficar deitado. Cariri, assumindo uma suspeita mudez, estirou as mãos e entregou a caixinha. "Seu" Antônio, ali mesmo no terreiro, foi logo partindo os cordões e puxando a tampa. Aos olhos bem arregalados de Cariri, tirou um pequeno papel escrito e foi imediatamente lendo em voz alta.
"Sr. Antônio, estou vendo que vai cair uma tempestade e por isso, não posso ir hoje. Me desculpe!".
E, logo abaixo, em versos:
Ouvindo trovões, com vida,
Anselmo não morre, não!
Não acelera a batida
um susto no coração?!
Cariri, encabulado, mas com grande espírito de tolerância, olhou para as roupas molhadas e fez:
- Hrum!!
*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor. Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.
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