sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Vestígios de uma noite

Amanhecer no Sítio Aguazinha, Iati, Pernambuco

O velho relógio de parede mantinha-se cadenciado, cujo pêndulo mostrava-se refletido pela baça luz do candeeiro

O mugido do gado no curral, o coaxar dos sapos e o trilar de um grilo no interior do casarão, serviam para  neutralizar a monotonia da noite que ao correr das horas adentrava-se lentamente. Vez por outra uma tossidela um tanto rouca, seguida por uma cuspidela, se fazia ouvir do quarto vizinho. Era Malaquias que, involuntariamente, completava sua expiração, após sucessivas baforadas tiradas do seu fogoso cachimbo. Dir-se-ia que o velho, como sempre, passara mais uma noite sem que tivesse conseguido conciliar o sono. Passos lentos e por vezes arrastados, provindos de outra dependência, se nos dava a entender que tia Joaquina como chamavam-na, já estava a postos para os serviços rotineiros daquela madrugada de domingo. Tia Joaquina parou instantaneamente diante do candeeiro chaminé, retirou a manga toldada de fumo riscou um fósforo e acendeu a mecha, colocando-o no mesmo prego de parede, aumentando gradativamente a chama. A seguir, pegou um candeeiro-de-pé, acendeu com o fósforo que ainda chamejava e levou-o à cozinha, onde  lá, retirou a marmita da trempe, atiçou algumas brasas que ainda ardiam debaixo de algumas brasas que ainda ardiam debaixo de algumas achas, recebendo, em contrapartida, um espiral de fuligem no rosto, obrigando-a a lavar-se imediatamente, para ver se conseguia retirar dos  olhos alguns argueiros. Arquimedes também se levantara e após vestir uma ceroula dirigiu-se à cozinha a fim de receber a bênção de Tia Joaquina que não estava nada agradável. Esta, ao ver o rapaz com tal peça de vestuário, usando de um cabo de vassoura, investiu contra o mesmo exprobando:

- Tenha respeito! Isso é traje de se apresentar a uma tia!?

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Duas badaladas ecoaram no salão, em contrastação com o trilar do grilo que continuava impertinente. O velho relógio de parede mantinha-se cadenciado, cujo pêndulo mostrava-se refletido pela baça luz do candeeiro. Arquimedes, já uniformizado, abrira uma das 3 janelas fronteiriças e pôs-se a contemplar a escuridão da noite, aspirando o perfume de algumas plantas de estufa dependuradas na varanda. Uma leve chuva ressoava no terreiro e uma brisa suave cortava levemente o ar. No interior da casa outras pessoas também já se encontravam de pé e a balbúrdia já se podia ouvir à distância. Dona Georgina, esposa de Malaquias, vestia um roupão de cambraia bordada, orlado de babados, um chalé sobre os ombros e usava ainda um par de tamancos de cor violácea, feitos de encomenda. Mantinha-se de pé ante a porta de um dos quartos laterais da sala de jantar e batia compassadamente chamando suas filhas. Nisto, a porta se abriu e uma graciosa menina de aproximadamente dezesseis anos de idade espreguiçou-se e com voz de sono falou.

- A benção, mãe!

- Deus te abençoe, minha filha, - respondeu Georgina com amabilidade. 

Outra garota apresentou-se a seguir. Era um tanto mais baixa e robusta, de menos idade, quatro anos mais nova do que a primeira. Após receberem a bênção de sua mãe, foram ao quarto principal localizado na sala de estar a fim de pedirem a bênção do pai. Este, mantinha-se ainda no interior, a fumar o seu cachimbo e com voz grave respondeu as bênçãos a si dirigidas. Essas moças eram por demais mimadas pelos pais, em detrimento a compostura de ambas e por serem ainda criaturas afáveis e enternecedoras. Após haverem lavado os rostos, retornaram à sala a fim de esperarem o café. Duas horas e trinta minutos acabara de soar e, tanto Corina, a filha mais velha, como Benedita, a mais jovial, gostava de se debruçar na varanda, até que as chamassem para as refeições. Abriram a porta lateral e se debruçaram na amurada durante  algum tempo, a olharem o negrume da noite, enquanto Arquimedes mantinha-se à distância, recostado a uma das pilastras.

- Que frio faz aqui fora hein Benedita?

- É verdade. Toma o meu chale!

- E você?

- Eu!? Ora, Corina, não estou com frio, veja minha mão.

- Virgem Santa! Que quentura!

No interior da casa o velho Malaquias havia se levantando e convocara todos para a oração da manhã, diante do oratório exposto na parte central do quarto principal. Georgina chamou os filhos. O último a chegar foi o tio Zeca que se queixava de um panarício no anular da mão esquerda que não o deixara dormir um só instante. Por vezes, as orações foram interrompidas devido o trilar do grilo que mantinha-se abusivo. Findas as preces, todos sentaram-se à mesa, onde algumas iguarias estavam fumegantes. Dente estas havia cuscuz, coalhada, requeijão, biscoitos, café e leite em abundância. O velho Malaquias nunca desprezara os  seus arrotos e tinha-os como algo destacável. Igualmente procedia o irmão, tio Zeca, com a mesma naturalidade, ante as demais pessoas da casa que, nem de longe podiam imaginar se aquele ato uma falta de educação.

Assim era a vida daquela gente humilde e sobremaneira acolhedora, apesar de serem todos analfabetos.

Benedita e Corina retornaram à varanda. Instantes depois o relógio dera três badaladas. A impaciência de Malaquias já se fazia notar, em razão de até aquela instância não  haver chegado o seu irmão Cosme e sua esposa Conceição, que  comprometeram-se a comparecer para acompanhá-los à  missa. O aludido casal morava no mesmo sítio, num recanto denominado "grota".

- Arquimedes! exclamou autoritariamente Malaquias ao filho - Vá buscar os arreios da  égua!

- Sim papai.

Instantes depois voltava o rapaz trazendo o que havia sido pedido, quando o pai um tanto nervoso indagou:

- Faltam o coxim e as esporas!

- Vai já - retrucou Georgina impaciente.

- Avia mulher, a hora está passando, já são mais de três!

Enquanto o reboliço era uma constante, Benedita e Corina conversavam sossegadamente, obedecendo a singeleza que lhes era peculiar.

- Adivinhas no que  estou pensando... - conjeturou Corina.

- Na longa caminhada que vamos fazer?

- Não; na última noite de maio, quando Edmundo esteve aqui.

Ora, sua bestalhona, esqueces aquele rapaz. Ele não é digno de tua pessoa; não tem as dignas atitudes de um cavalheiro e ademais, é muito feio.

- Não se pode julgar ninguém pelo aspecto exterior. Benedita, mas pelas qualidades espirituais.

Passado algum momento de pausa e reflexão, Benedita considerou:

- É, acho que você tem toda razão - olhando um vulto à distância - Quem será?

- Acho que é o tio Cosme e madrinha Conceição - respondeu Corina

Passado algum momento todos se puseram à caminho, ficando em casa a tia Joaquina para cuidar dos afazeres domésticos. Sim, porque, achava-se esta sem condições de  poder empreender a jornada devido a idade. Malaquias ia montado na égua, enquanto o velho Zeca e Cosme iam na frente portando lanternas que acendiam vez por outra. Georgina e seus filhos caminhavam juntos, além de Conceição que baforava um cigarro de palha. Após colocaram a tranca na cancela e haverem retirado os sapatos e alpargatas, avançaram estrada afora conversando entre si assuntos diversificados. A noite estava escura como breu e a cada instante ouvia-se o farfalhar de folhas, motivado talvez por alguma ave noturna, fazendo estremecer os transeuntes. A égua galopava a passos largos e os grupos vez por outra distanciavam-se, obrigando Malaquias a parar a cavalgadura alguns instantes. O cricrilar do grilo parecia acompanhar as nossas personagens estrada afora e não foi sem razão que  Malaquias, em tom de galhofa, asseverou para os que acompanhavam:

- Interessante! Se eu acreditasse em espírito de grilo, ficaria temeroso em pensar que o de casa havia  morrido e estava nos seguindo.

Tal conjetura resultou em gargalhadas.

- E o pior, compadre Zeca, - afirmou - Georgina - é que parece ser o chiado do  mesmo grilo.

- Ora comadre, - retrucou Conceição depois de cuspir - os grilos são todos iguais e cantam do mesmo jeito.

- É verdade, mas nenhum acompanha as pessoas e esse parece nos acompanhar.

Assim, a viagem continuou sem interrupção. Malaquias susteve as rédeas do animal e fê-lo parar um instante, enquanto as demais pessoas por ele passavam despreocupados. O motivo dessa pausa foi apenas para consultar o seu relógio de algibeira e para tal, necessitou da  lanterna de Cosme que  alumiou na ocasião. Faltavam dez para as quatro. A cronometragem  se coadunava com o progresso da caminhada e  pela previsão haveriam de chegar em tempo à Igreja.

Num dado momento Benedita acotovelou sua mãe e fê-la olhar para um recanto da estrada, quando exclamou:

- Olhe, mãe, tio Zeca ficou escondido atrás daquele arvoredo!

- Cala-te a boca menina, não vê que ele foi verter água!?

- Esta menina parece que não tem juízo, - retrucou Arquimedes - faz cada pergunta besta!

O tempo urgia e os  minutos avançavam, fazendo-os apressarem os passos, enquanto o trilar do grilo persistia impacientando a todos. Várias vezes Malaquias exprobrara palavras de repúdio a esses pequenos seres alegando ser um descanso para a humanidade se tais cantores fossem extintos da face da terra. Em contrapartida, reparava seu erro e afirmava arrependidamente:

- Deus me perdoe, - benzia-se - mas que  o grilo é chato, disto não tenho dúvidas. (Texto de Maviael Medeiros | Garanhuns | 25 de Fevereiro de 1978 | Jornal O Monitor).

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