sexta-feira, 28 de junho de 2024

O alfaiate de Garanhuns


João Marques* | Garanhuns

Luiz Gonzaga cantava uma música que dizia "Sou alfaiate do primeiro ano / Pego na tesoura e vou cortando o pano". Isto foi no tempo dos alfaiates, quando não existiam estas lojas de roupas prontas. Comprava-se o pano, e o alfaiate era quem fazia a roupa. Eram muitos profissionais e grandes alfaiatarias. Mas o tempo, que é esta linha enorme, vem mudando a cada nova estação. Cortando o pano, como a tesoura, ele se altera, para se recompor depois. O tempo é, sem dúvida, um grande alfaiate que  cose a vida, modelando-lhe formas em camisas listradas. Pijamas também! Os paletós, que dão à apresentação do homem ombros de titãs. Ele, o tempo (o alfaiate) corta, cose e altera. A tesoura corta... o primeiro e, o último ano.

Milton morreu!

Milton Dias de Brito (foto), que tinha o tempo no nome... nas mãos a tesoura a cortar a vida, para cortar o tempo, como o tempo o cortou. Sessenta e oito anos de vida, nascido numa cidadezinha da Paraíba, Livramento. Livre do mundo dos ombros e das injustiças! Rogo por ele a memória de um trabalhador. Nem é preciso dizer que era simples. Trabalhador. Alfaiate, aqui chegou em 1951. Garanhuns, esta cidade vestida do véu neste mês de agosto ou vestida com o terno branco que o alfaiate costura numa manhã risonha, de brisas e flores, abrigou Milton, vestindo-o de água e sol, e ele vestindo-a de inverno e verão.

Conheci Milton, com a sua Alfaiataria Brito, há anos. Foi o meu alfaiate do primeiro ano. O primeiro paletó. Ah! Como me orgulhei no primeiro terno. Branco, de linho branco, feito pelo alfaiate com a linha do tempo. Vesti e passei pela avenida da vida, conquistando as mulheres. Lembranças! Como me vêm as lembranças... As mulheres nos grandes retratos na alfaiataria. Nuinhas!... E tanto pano no balcão de Milton. Mas a tesoura cortava e tudo depois do corte ficava transparente. Milton trazia não sei de onde aquelas mulheres bonitas. De papel, mas bonitas. As de pano são mais difíceis e não são transparentes. Eu ficava olhando as mulheres e Milton cortando o pano. Dizia umas coisas e Milton achava graça. Depois, ele era quem falava como sabia. As opacidades do mundo!

Não me disse que ele fosse comunista. Era um trabalhador esclarecido, sabia das coisas. Falava como cortava, como cosia bem. Admirador do tratamento dispensado, nos países comunistas, ao trabalhador. Socialista pela tesoura e nas cores mais bonitas do pano. A última vez que o vi falou contra os americanos. Contra o Plano Real... 

O seu óbulo agora é como o botão que foi no paletó. A linha continua, mais comprida que antes. Comprida como um raio de sol ou como o cintilar de uma estrela. Agora a tesoura não corta mais.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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