terça-feira, 1 de agosto de 2023

Memórias do Monsenhor Adelmar Valença - Parte XI

Monsenhor Adelmar da Mota Valença em celebração na  capela do Colégio do Arraial.

Em novembro, recebi convite de Agobar para assistir à sua ordenação. Para a ordenação, tinham ido morar na querida rua da Aurora nº 86, a rua da nossa chegada, em 1913, em Garanhuns. Com o pensamento, acompanhei, nos dias 22, 27 e 29 de dezembro, as suas ordenações. No dia 1º de janeiro, às 9h da manhã, chorando, eu escrevia para minha família, para desafogar a saudade que me ia na alma, lembrando-me de que, àquela hora, Agobar cantava sua primeira missa. A 1º de fevereiro, deixei de dormir em casa de Ismael e fui para um quarto, em frente à Cruz do Pascoal, pagando 50$000. Era uma casa de família: o velho, a velha, a filha. Queriam que eu tivesse ali como se estivesse na minha casa. Atendi só no 1º dia; nos outros dias, passava direto para meu quarto, onde colocavam certos livros não recomendados. E eu lia. Durante quase todo o ano de 1930, ganhava, também, perto de 70$000 mensais, de escritas particulares que eu fazia. Numa cadernetazinha que o Banco dava como lembrança aos clientes, escrevi muitas coisas sobre a Bahia: comidas, palavras, expressões, costumes, nomes de ruas, igreja. Não me acostumava com certas coisas. 

Às vezes, andando, dava pontapé nos tais despachos que encontrava pela manhã, deixando escandalizadas as pessoas que me viam fazendo isso. Em setembro, depois de dois anos e meio fora de casa, comecei a pensar em voltar, sobretudo porque a saúde de minha mãe  me tirava todo o sossego. E, no dia 20, escrevi a Agobar sobre isso. Respondeu-me imediatamente, no dia 24, mandando 100$000 pelo Banco do Brasil, avisando que me esperaria na quinta-feira,  2 de outubro. Foi essa a última carta que me escreveu, pois um mês depois, estava morto. Como eu queria deixar tudo direitinho, com a escrita do Banco em dia e o balancete organizada, respondi que só iria no dia nove de outubro. Rebentou a revolução, no dia 4 de outubro. 

Impressionaram-me as depredações e queimas de bondes. Aconselharam-me a não embarcar. Todos os navios ficavam detidos no Porto. Procurei, por todos os meios, telegrafar, avisando o adiamento da viagem, mas os telégrafos estavam interrompidos. É incrível que, poucos dias antes, eu sonhara com uma coisa parecida com revolução. No dia 10 de outubro, acordei-me chorando, pois sonhara com minha mãe abraçando-me e minhas irmãs de luto. No dia seguinte, outro sonho semelhante a esse. Impressionado e com um pressentimento de que minha mãe tivesse morrido, contei tudo a D. Isabel, manifestando o desejo de vir embora por terra. Ela tranquilizou-me, dizendo que eu não devia acreditar em sonho. E eu, também, não queria acreditar. No entanto, naquele mesmo dia, Agobar era operado. 

No dia 16, D. Isabel e as filhas foram para Catu e, como Ismael me pediu, fui para casa dele, no dia seguinte. Numa dessas noite, preparava-me para deitar quando chega Ismael, assombrado com um rumor que tinha ouvido. Não tinha coragem de voltar, mas, se eu quisesse, fosse olhar o que era. Não fui, mas tive medo, nem dei importância ao caso. 

No dia 22, morria Agobar e eu, infelizmente, de nada sabia, nem sentia mais os pressentimentos dos dias anteriores. Se, às orações e penitências de meus pais e irmãos, tivesse eu acrescentado as minhas, ele não teria morrido. No domingo, 26, à noite, Ismael mostrou-me um telegrama de meu pai, nestes termos: "Avise urgente motivo demora Adelmar Emília bem". Sorri. Recebera, finalmente, notícias de minha mãe, com quem eu, desde aqueles sonhos, me preocupava muito. Quanta coisa diziam aquelas palavras e eu não adivinhava. 

No dia 28, às 9 horas, trabalhava, satisfeito, no Banco, quando entra Ismael com três telegramas dos dias 11, 12 e 14: "Agobar operado grave - Agobar gravíssimo - Fora perigo". Foi horrível o choque. Ismael escondera o telegrama da morte. Passei o dia e a noite na maior inquietação e raciocinava assim: "Se o telegrama do dia 26 nada dizia sobre Agobar é porque ele morreu ou ficou bom de repente". Insisti com Ismael por notícias e ele me garantiu que telegrafara. Realmente, telegrafara dando os pêsames. 

No dia 29, ouvi missa por Agobar, caso ele tivesse morrido. Fui para o Banco. Às 9 horas, o Sr. Pedrão chega e me dá a triste notícia. Ali, debrucei-me sobre a mesa e, durante duas horas, chorei. Em seguida, fiz a conta do caixa, preparei tudo direitinho e entreguei as chaves. Com o ordenado, deram-me 150$000 de gratificação. Fiquei devendo 250$000 que, depois, foram liquidados com as ações do Banco que eu tinha. Despedi-me. O sr. Pedrão e o filho, Jorge, ficaram chorando. No quarto, sozinho, coloquei o retrato de Agobar sobre o móvel e, ajoelhado, chorei muito. 

Mandei tingir minhas roupas e, no dia seguinte, vesti luto pela primeira vez na vida. Para a minha volta para Garanhuns, eu tinha feito um jaquetão branco e comprara um chapéu de palhinha; ficaram para Amílcar. Comunguei naquele dia 30 e encontrei pessoas que tinham vindo de Garanhuns, como soldados da revolução; deram-me os pêsames, fazendo-me ficar, ainda mais, certo da realidade. Havia um navio para o Norte, que sairia no dia 31. Era o 2º depois da revolução, mas de nada eu sabia quando o primeiro saiu. 

Ismael restitui-me 100$000 dos 862$100 que, de janeiro de 1929 a outubro de 1930, em 14 vezes, me pedira; 66$000 foram pedidos por Rafael. Era muito para o pouco que eu ganhava, mas nunca deixei de atender, servindo como uma retribuição pelos dias que eu passara em sua casa, pela sua bondade e pelos exemplos de fé e piedade que sempre me deu. Comprei a passagem pelo navio Itagiba e fui para bordo, às 9 e meia da noite do dia 31. Partimos à 1 hora da madrugada; já era 1º de novembro! Acabrunhado, eu fui para o convés, vendo desaparecer dos meus olhos a já querida Bahia, testemunha dos meus trabalhos e sofrimentos durante os dois anos e treze dias que ali passei, coroados com as minhas angústias pela morte de Agobar! De um lado, a cidade iluminada que desaparecia e, do outro, a lua que se punha no mar! Antevia a minha chegada em Garanhuns. 

Fonte: Diocesano de Garanhuns e Monsenhor Adelmar de Corpo e Alma do escritor Manoel Neto Teixeira.

Foto: Monsenhor Adelmar da Mota Valença em celebração na  capela do Colégio do Arraial.

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