terça-feira, 11 de junho de 2024

Memórias do Monsenhor Adelmar Valença - Parte I


Nasci no Beira-Mar, perto de Pesqueira, no dia 4 de julho de 1908, em um sábado, às 3 horas da tarde. Fui o oitavo filho de Abílio Camilo Cordeiro Valença e de Emília Benvinda da Mota Valença, casados no Vasco, aos 31 de julho de 1895. São meus avós paternos: José Camilo Valença e Maria Cordeiro da Fonseca Valença; avós maternos, João Tavares da Mota (português) e Maria Benvinda Valença da Mota. Os irmãos que me antecederam foram: Corina, Alódia, Emília, Arlinda, Alcina, Almira e Agobar; depois de mim, nasceram: Maria, Anita, Amílcar, Asnar, Abgar, Abigail, Adisa e Arminda. Deram-me o nome de Adelmar, como homenagem ao poeta pernambucano Adelmar Tavares cujas poesias, publicadas no "O Malho", meus pais gostavam de ler. Fui batizado pelo Padre Frutuoso Rolim, em Lagoa Rasa, perto do Beira-Mar, aos 15 de setembro de 1908, em uma terça-feira, tendo, como padrinhos, João Valença da Mota (irmão de minha mãe) e Maria Augusta da Mota. Francisca Xavier foi minha madrinha de apresentação. Nasci na Casa do Alto, não na casa grande Beira-Mar; no quarto onde nasci, nasceram também Agobar e Maria.

Coisas que não me lembro:  1º) Fui encontrado, um dia, dentro de um chiqueiro; 2º) Comia melancias em tão grande quantidade que botava o bagaço da boca para fora; 3º) Na ausência do meu pai, eu vestia o seu paletó, até a sua  volta; 4º) Indo atravessar a sala e, ai, encontrando uma visita, fiquei emperrado muito tempo, até que a visita saísse; 5º) Chamando de capim os cabelos do peito de meu pai, ouvi a explicação que não era capim, mas cabelo; vendo, depois, um cavalo no pasto, apontei para ele, dizendo que estava comendo cabelo. Do Beira-Mar, tenho lembranças muito apagadas. O mais longínquo quadro é aquele em que, saindo sozinho de casa, parei num caminho que, parece, contornava uma serra e,  ouvindo o chocalho das vacas, parei a escutar, melancólico e saudoso. Saudoso de quê? Recordo-me, ainda, de um banho, no açude, com minhas tias e irmãs. E, principalmente, do constrangimento com que era obrigado a cortar o cabelo, com um barbeiro de Pesqueira, chamado Grilo. Do Vasco, onde estávamos em 1912, lembro-me de tio Antero, a nos arremedar, quando chorávamos, dizendo: "Mília, quero mamar!" Lembro-me de Corina, por brincadeira, vestindo-se de homem e aparecendo como se fosse uma pessoa estranha. Lembro-me, também, do fubá que fui tirar, por cima do candeeiro, queimando-me o cotovelo, onde, ainda hoje, tenho a marca. E parece-me estar vendo, ainda, meu pai, cavando um botija, dentro de casa, baseado num sonho de minha mãe que vira naquele local, uma caixa, com o nome João de Deus, um português que fora dono do Vasco e que morrera assassinado, sem mostrar o dinheiro. Dizem que, anos depois, naquele mesmo lugar, a botija foi encontrada, mais para baixo. A 18 de setembro desse ano (1912), partimos para Pesqueira, deixando o Vasco para sempre. Lembro-me da viagem, feita à noite: nós, os menores, dos dois lados do cavalo, em caixas de carregar queijo, comendo bolacha. Cantavam os galos, mesmo sendo eu tão pequeno! Talvez essa saudade fosse uma participação minha na dor imensa que ia na alma de meus pais! Pobres pais! Para sempre deixaram o Vasco onde se casaram e moraram, o querido Vasco, para eles, de tantas lembranças! Recordo a visita que fizemos à casa de tio Gonçalo, onde nós, os pequenos, ficamos almoçando numa esteira, sentindo eu, como ainda hoje, a repugnância da carne gordurosa. A cadeia, em frente, com os presos, recebendo a comida em vasilhas puxadas por uma corda... O Bernardo, simpático, que nos vendia bananas pintadinhas e maduras e, depois, o seu velório, no qual ouvi, pela primeira vez, o "Dai-nos a bênção", hino que nunca ouço sem me lembrar dele, morto, numa esteira... Tinha sido, certamente, escravo, até 1888, e tinha o mesmo nome de um santo devoto de Nosso Senhora, São Bernardo, que compusera o "Lembrai-vos". A 13 de novembro de 1912, fomos morar em Gravatá. O barulho da padaria... O homem do carvão... A espreguiçadeira que feriu o dedo de Agobar... A goma que comíamos escondidos e Corina brigava com a gente... A ponte atrás da casa nossa, onde uma mulher, vendo meus chinelinhos emborcados, disse que "fazia mal"... A primeira vez que entrei numa igreja... Aquele primeiro carnaval que eu via, com aquele Bumba-Meu-Boi, a nos fazer medo... Aquelas jabuticabas que comíamos na ladeira do Cruzeiro... O primeiro retrato que  tiramos, em janeiro de 1913... A mudança da pobre Corina, à noite, doente, para uma outra casa... Sua morte, no dia 20 de abril... Pobre Corina! Dela, bem pouco me lembro, mas esse pouco se transformou numa grande afeição! No dia seguinte ao da sua morte, saímos para Pesqueira, onde ficamos até 21 de maio, quando saímos para Garanhuns. Ao passar o trem por Gravatá, estavam na estação, esperando-nos, dois meninos que sempre, lá, brincavam conosco. Tão pequeno e tão tolo era eu que, passando por ali, deles me lembrava, mas, de Corina, não. À noite, chegamos ao Recife e dormimos na casa de um parente da gente, Antônio Camilo Valença. No dia seguinte, 22 de maio, saímos para Garanhuns. Da viagem de trem, só me lembro da maré que, em Cinco Pontas, chegava até os trilhos. Recordo também, que dormi, quase todo o tempo, numa manta grossa daquelas que eram usadas sobre as selas, com dois bolsos grandes, chamadas de "coronas". 

Fonte: O Diocesano de Garanhuns e Mons. Adelmar de Corpo e Alma / Manoel Neto Teixeira.

Foto: Padre Adelmar da Mota Valença ainda jovem.

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