A responsabilidade, porém, do sítio era de meu pai. Lembro-me muito das enxurradas da cheia de 1914. Saímos da Vila Regina e fomos morar no sítio do Dr. Jardim, entre a Serra das Antas e a cidade. Na casa, um quarto sempre fechado, parece que por ter falecido nele, de varíola, a esposa do Dr. Jardim, D. Secunda. Encontramos nele um belo pé de maracujá. Nessa casa, ouvi, pela primeira vez, de longe, a música tocando o Zé Pereira, no carnaval do ano de 1915. Foi lá, sem vocação para cabeleireiro, cortei os cabelos de Anita, quando ela e minhas irmãs se preparavam para tirar um retrato, retrato que, por isso, saiu sem ela. Deixando esse sítio, fomos morar na rua do Recife, na casa onde, a 19 de maio de 1915, nasceu Amílcar, saudado por um vizinho, pela manhã, com expressão que eu não entendia, "Benzó Deus!". Morávamos nessa casa, quando meu pai, comigo e Agobar, foi de trem, a Catende, visitar um irmão chamado Francisco Camilo Valença. Meu pai tinha uns amigos na Boa Vista; jogando baralho com eles, passou uma noite inteira; logo que o dia amanheceu, minha mãe mandou que Agobar e eu fôssemos chamá-lo; recebeu-nos bem e voltou conosco para casa.
Dessa casa, fomos assistir, na mesma rua, à beleza do violino tocado por Lica, que, cantando também, mesmo tão tarde da noite, impressionava-me, quando dizia: "A primavera passa e depois volta - A mocidade não nos volta mais!" Nessa casa, ainda morávamos, quando fomos para a Escola de Artur Maia, na rua Santos Dumont. Um dia, porque mangara de uma ferida de Agobar, um colega levou, numa esquina da rua Manuel Borba, uma tapa de Agobar e outra minha. Já estávamos morando na Vila Regina, novamente, quando Amílcar se batizou, a 9 de setembro de 1915. Melhor do que da outra vez, porque ficamos na casa toda. Gostava de me deitar, de barriga para cima, naquela areia espessa, olhando a beleza deste céu sem igual. Fui mártir de dor de barriga, muita dor de dentes, doença de olhos, papeira, coqueluche. Andei muito doente: disse Américo Carneiro que era "figado", mas não era, não; minha mãe curou-me com mastruço escondido por ela, em bolinhas de banana. Fugi, uma vez, para os matos, para não apanhar, como Agobar, umas palmadas de meu pau: estávamos fazendo arapucas e nos esquecemos de avisar; voltei, bem devagar, e minha mãe, vendo-me, botou-me para dentro de casa, livrando-me. Um dia, no fim da tarde, minhas irmãs brincavam de adivinhação e truques, com umas amigas. Um dos tais truques era um lenço, imitando um sapo, que, empurrado pelo dedo, saltava sobre a gente; como já nesse tempo eu não gostava de fingimento, saí escondido e fui, uns duzentos metros abaixo, a um tanque, perto do banheiro público, para pegar um sapo e enrolá-lo num lenço e fazer o truque; já estava escuro quando voltei, sem pegar nenhum sapo, pois, embora muitos, eram mais espertos do que eu. Brincando, um dia, fazia esforços para passar por um buraco do sofá, sem conseguir; com uma palmada de meu pai, passei logo. Julgava-me caipora e para provar a Alódia que eu tinha "macacôa", enrolei a linha do pião e sacudi-o; e o pião não rodou! Recordo um tiro que Alódia deu, abrindo uma janela, à noite, para amedrontar um ladrão que procurava levar galinhas do poleiro. Levando vacas para o Vasco, meu pai levou-nos também; ficamos numa casinha improvisada e, quando fomos visitar tio Zeca, ele nos leu a mão; disse que morreria com 72 anos e Agobar, com 62. É esquisito que, revendo o Vasco, eu não sentia saudades: faltava-me ainda, naquela cidade, a base de sofrimento, para poder sentir saudade. Gostava daqueles passeios que meu pai dava, à noite, à Boa Vista, levando-nos.
Fonte: O Diocesano de Garanhuns e Monsenhor Adelmar de Corpo e Alma / Manoel Neto Teixeira.
Foto: Padre Adelmar da Mota Valença.
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