quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Memórias do Monsenhor Adelmar Valença - Parte X

Navio Itassucê teve sua construção concluída em outubro de 1912

No dia 16 de outubro, terça-feira, diante da dificuldade das viagens por terra comprei a passagem do navio, arrumei a bolsa, escrevi cartas de despedida para Agobar e para meus pais e irmãos. E, às 5h da tarde, fui para bordo do navio Itassucê, com terrível angústia no coração. O navio partiu à 1 hora da madrugada do dia 17, tendo chegado a Maceió, às 13 horas. Até aí, foi horrível a viagem, por causa do enjoo do mar. Estava resolvido a saltar em Maceió e seguir de trem para Garanhuns. Mas foi providencial a demora no Porto de Maceió, pois comi umas batatas doces e animei-me. Partimos às 5h da tarde e não mais enjoei. Céu e mar! Chegamos a Salvador, no dia seguinte, às 17 horas. Ismael estava no Porto e levou-me para sua casa, onde fui bem recebido por D. Isabel, Rafael, Nininha e Felismina, cuja bondade nunca esquecerei. Embora bem apanhado na vida, senti vaidade, vendo meu nome, no dia seguinte, nos jornais que costumavam dar os nomes dos passageiros desembarcados dos navios... Aluguei um quarto na pensão de D. Esmeralda, quase junto da igreja de São Francisco, por 50$000. Entre seus hóspedes, havia um que, à noite, tinha ataques epiléticos, causando-me horror. Que dificuldade para arranjar emprego e que decepção! Só no dia 14 de novembro, é que consegui, num Banco Popular, um emprego, como cobrador, ganhando 70$000 por mês.

Dom Manuel Antônio de Paiva - Segundo bispo de Garanhuns (1929-1937)
O diretor disse que eu fosse no dia seguinte. Feriado nacional, não fui. No dia seguinte, ele reclamou porque eu não tinha ido. Comecei, ouvindo reclamação. Trabalhava muito, subindo ladeiras e caminhando pelas ruas, mas isso era providencial, porque ia conhecendo a cidade. Numa dessas andanças, bati numa porta e, erguendo os olhos, vi, na janela, um leproso; corri de rua abaixo, sem olhar para trás, com medo.

Ismael prometera pagar o aluguel do quarto e se esquecera. recebi a cobrança. Ficava, na praça em frente, até tarde da noite, à espera que D. Esmeralda dormisse; mas, uma noite, ela esperou por mim. O valentão de outrora estava ali, humilhado, recebendo cobrança de uma Esmeralda... Pedi ao Banco um adiantamento e paguei os dois meses. Adoeci de impaludismo. Cansei. Julguei que morria. Mantinha, com minha família, uma correspondência semanal e era esse o meu único conforto. Em janeiro, adoecendo, pela segunda vez, de impaludismo, voltei para a casa de Ismael, onde, também, tomava café e a ceia, até 28 de junho, quando aluguei um outro quarto, na Ladeira do Carmo, por 40$000 adiantados. Eu mesmo fazia o café e a ceia. Nesse quarto, na segunda noite, descobri que a dona era uma mulher suspeita e, perdendo o que pagara, passei-me para um outro quarto, na mesma rua, pagando 30$000 por mês. 

Aos domingos, passeava muito, de bonde e a pé; e, às vezes, me assentava aos pés duma pela estátua do Bom Pastor, localizada na Barra, e ficava a olhar, saudoso, aquele mar que me dava uma melancolia esquisita. A 3 de maio de 1929, consegui terminar as 9 primeiras sextas-feiras, sendo que as 2 primeiras tinham sido feitas no Recife. O Sagrado Coração de Jesus prometera a graça da perseverança. E, no dia 4 de julho, para comemorar os meus 21 anos, fiz uma confissão geral, a melhor da minha vida. Para essa confissão, ao sair do Banco, fiz a ceia e comecei a escrever meus pecados em uma cadernetazinha, terminei ao amanhecer e saí logo para São Francisco, onde confessei-me, comunguei e, na livraria do Convento, comprei um Adoremus como lembrança. Em setembro, quando já estava sem esperanças de melhorar de emprego, cansado de trabalhar, sem poder voltar para casa, foram dispensadas a Contadora e uma auxiliar (D. Adélia e D. Angélica). Assumi os lugares de ambas, ficando, também, como Caixa.

Meu ordenado passou a ser 100$000. Trabalhava excessivamente, mas embora o ordenado não compensasse, considero ter sido esse o meu melhor emprego. O Banco tinha, também, uma revista mensal, "O Social", na qual eram publicados os balancetes e balanços do Banco. Aquele bobo que gostava de ver seu nome nos jornais, já nem ligava, vendo o seu nome publicado nessa revista, nos balancetes e balanço, com o nome de Contador! Todo o movimento do Banco estava, agora, em minhas mãos. Guardava as chaves do cofre e do Banco e os diretores davam-me toda liberdade. Comprei umas ações, tornando-me, assim, acionista do Banco, cujos diretores eram: Veriano Raul Pedrão, dr. Argobasto Gomes de Oliveira e Emílio Torres, sendo que só o primeiro tinha expediente fixo. Este convidou-me, um dia, para almoçar na sua casa, pelo aniversário da filha. Tinha sabido que essa filha, Elza, talvez estivesse com tuberculose. Vou, não vou, mas terminei indo. Com a ânsia de terminar logo, sofri muito, com medo dela, coitada, com aquele sorriso. Voltei lá quando ela morreu. Todos os dias, à hora do almoço, eu gostava de ir para o Porto, bem perto, e me assentava nas placas dos guindastes, ficando a olhar o movimento dos navios. Um dia, aí, vi D. Paiva que, deixando a Diocese de Ilhéus, ia tomar posse em Garanhuns. Não tive coragem de ir falar com ele e fui censurado por isso, por Ismael; mas não me arrependo, pois que credenciais tinha eu? As cartas para casa, sempre eu as colocava no correio do navio, carimbadas, antes, no Correio geral.

No porto, sentado, um dia, embaixo de um guindaste, cometi uma grosseria de que me arrependo. Passava um navio, para o sul, um antigo colega. Era Cláudio Peres, irmão de Clemente, Suzana e Célia, que tinham saído de Garanhuns, há uns seis anos; nas festas de D. Moura, éramos seis acólitos, sendo Cláudio um deles. Do convés, avistou-me e desceu, rápido, para onde eu estava, esperei que ele falasse comigo. Vendo-me calado, certamente pensou que era alguém parecido comigo. Não me dobrei. Ele não tirava os olhos de mim. Depois, muito depois, voltou para o navio e, do convés, continuou a olhar para mim. Com certeza, ao chegar em São Paulo, deve ter dito a Suzana: "Na Bahia, vi um sujeito que era a cara de Adelmar!" "Saí do Porto, envergonhado do orgulho que tinha. Em outubro, fui dormir, novamente, na casa de Ismael, mas sem fazer refeições, aquele quarto onde dormíamos (Ismael, Rafael e eu) era um encanto, pois ficava num alto, com a vista para a Baía de Todos os Santos, sempre cheia de beleza, de dia e à noite.

Fonte: O Diocesano de Garanhuns e Monsenhor Adelmar de Corpo e Alma / Manoel Neto Teixeira /1994.

História do Navio Itassucê: 

Em 1911 a sua quilha foi batida. Em 2 de agosto de 1912 foi lançado para a Companhia Nacional de Navegação Costeira, Rio de Janeiro, sendo batizado como ITASSUCÊ. Em outubro de 1912 a sua construção foi concluída. Em 1943 foi transferido para a Armada do Brasil, sendo renomeado como ALMIRANTE FRONTIN. Em 1959 foi vendido para Domingo Gonçalves Martins, Rio de Janeiro, sendo renomeado como CONSUL CARLOS RENAUX. Em 1970, após sofrer incêndio, foi sucateado no Rio de Janeiro, Brasil.

Fonte: www.navioseportos.com.br/site/index.php/uteis/biblioteca-digital/navios/640-itassuce-1912

Fotos: (1) - Navio Itassucê teve sua construção concluída em outubro de 1912. Créditos da Imagem: R M Gouvea Leilões. (2) - Dom Manuel Antônio de Paiva - Segundo bispo de Garanhuns (1929-1937).

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