sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Machado de Assis inda deitado

João Marques

João Marques* | Garanhuns

Outro dia, acordei com uma cigarra cantando no poste que  fica na frente de casa. Admirei-me. Não me lembrei de outra vez em que tivesse sido acordado por uma cigarra... E nem pelos passarinhos! Sempre escutei os passarinhos depois de acordado. Os pássaros, as vacas, as ovelhas, toda a natureza sonora, quando vivia no sítio. Mas cigarras logo bem cedo e acordando-me, não!

Por coincidência, descobri que Machado de Assis, antes de mim, também, tinha sido acordado por uma cigarra. Ele conta o seu despertar numa crônica de 7 de janeiro de 1894 e eu a tenho no 2º volume de "A Semana". Já transcrevo a história, para verem como acordava Machado de Assis ou o que pensava um escritor há cem anos, logo que  acordasse... 

Por aqui, quando as cigarras cantam muito, dizem que é verão, vem muito sol. E eu - filho legítimo do inverno - sinto mais o incômodo do calor. Natural e poeta pelo inverno, sinto-me bem em Garanhuns, esta terra que quase ficava toda inverno. E isto não aconteceu, porque justamente as cigarras, com seu  coro, atraíram para estas serras o verão também... isto foi antes que os guarás e os anús tomassem conta de tudo. Já dominavam os vales e as fontes. Depois, os sertanistas vieram com o fogo incendiário, abrindo veredas de sol e levantando tetos quentes para abrigar os nativos. Simôa Gomes, garanhuense, primeiro que nós, quando nasceu, não teve mais jeito, as cigarras cantavam pelos bambús e, noutra manhã, até a acordaram. Cigarra teimosa!

A minha, mais irônica, pousou e cantou num poste. Simôa Gomes, não sei o que pensou. Machado de Assis, já lhes mostro. Eu, invernal, chegando a um friozinho, para ficar mais tempo na cama, imaginei que, em lugar da cigarra, fosse um sapo (um sapo voador). O poste começava a cobrir-se de folhas verdes, as lâmpadas viraram frutos dependurados e os fios ficavam em sentido vertical, para caírem como os pingos da chuva... Mas, infortúnio meu, uma muriçoca insistente, que veraneava dentro do mosquiteiro, veio completar o coro aos meus ouvidos. Bem pertinho agora, para ser mais real. Saí de baixo do mosqueteiro - e porque não dizer poeticamente: do meu velho mosquiteiro - e fui para a primeira coisa do dia: lavar o rosto com água de alguma chuva.

Agora, Machado de Assis inda deitado:

"Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo, quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto. Um amigo meu conta-me cousas terríveis do verão de Cuiabá, onde, a certa hora do dia, chega a parar a administração pública. Tudo vai para as rêdes. Aqui não há rêde, não há descanso, não há nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar conversações moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que se  conhecem pouco e são obrigadas a vinte ou trinta minutos de bonde. Começa-se por uma exclamação e um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminiscências, e a declaração inevitável de que a pessoa passa bem de saúde, a despeito  da temperatura.

- Custa-me a suportar o calor, mas de saúde passo maravilhosamente bem. Não sei se é isso que me diz tôdas as manhãs a tal cigarra. Seja o que fôr, é sempre a mesma cousa, e é notícia d'alma, porque é dita com uma grande sonoridade e tenacidade que excede os maiores exemplos de gargantas  musicais, serviçais e rijas. A minha memória, que nunca perde essas ocasiões, recita logo a fábula de La Fontaine e reproduz a famosa gravura de Gustavo Doré, a bela moça de rebeca, que o inverno veio achar com a  rebeca na mão, repelida por uma mulher trabalhadeira, como faz a formiga à outra. E o quadro e os versos misturam-se, prendem-se de tal maneira, que acabo recitando as figuras e contemplando os versos.

Nisto antra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo, cantor medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra um concêrto de vozes, que me acorda inteiramente. Sacudo a preguiça, colijo os trechos de sonho que ficaram, se tive, e fito o dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal de Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o mesmíssimo Virgílio. É o período de loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela via Ápia, dobro a rua do Ouvidor, esbarro com Mecenas, que  me convida a cear com Augusto e um remanescente da companhia geral. Segue-se a vez de  um passarinho, que me canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela." (Respeitando a ortografia da impressão em 1962).

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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