quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Foram-se as enxurradas de ladeira abaixo

João Marques

João Marques* | Garanhuns

Em Garanhuns chovia muito. Isso no tempo em que estavam de pé as matas e não se tinha ainda começado a destruição da natureza. À tarde sempre, escurecia o céu, dois ou três trovões fortes abalavam a cidade, e começava a chuva. Muita água de cima, iluminada pelos relâmpagos intensos.

As enxurradas vinham de cima. Eu, menino, de perna forte, morava numa ladeira de rua pobre. Assim que começava a chuva, a enxurrada vinha descendo, correndo rente ao chão, sem medo de cair, e relar como eu os joelhos. O som da água rolando no chão duro não era a dos sapatos de sola, que eu usava, nem dos cascos de cavalo. Um som intenso de cachoeira, do chão se molhando e carregando no dorso o peso e os gritos dos pingos em disparada, e dos torrões de terra cedendo. Ia passando em cima da água barrenta uma carroça velha e sem roda... e deslizava, rápida como nunca. Um balaio com cipós soltos para cima. Alguns meio desfeitos, resistentes porém. Muita coisa vinha descendo, uma sapato rodando. Eu corria para janela e assistia à passagem da enxurrada. Chuva, trovões e relâmpagos.

Foram-se as enxurradas. Uma vez, enfrentei a enxurrada na Ladeira das Antas. A chuva me pegou no caminho, subindo a colina, para entrar na cidade. Vinha do sítio, à tardinha, e, por último, subia a ladeira de chegar, de pernas viajoras. A água descia poderosa, na maior das enxurradas... eu vinha pisando sem arredar. A força da correnteza era tanta, que me empurrava para trás. Eu resistia, curvando o corpo para frente. Trazia um velho guarda-chuva. E o vento forte sacudia-o de uma lado para o outro. Eu não o largava, segurando-me nele, e, incrivelmente o pano negro e as aspas não se rompiam. Segurei até o fim. Que enxurrada, daquele tempo... e não me carregou também, como foi com o balaio, porque me segurei no guarda-chuva. Eita guarda-chuva forte, de cabo e aspas armados da tempestade. Foram-se tudo. E tudo se juntou longe no mar, ameaçando as margens de pedra, como fazia a enxurrada de minha rua, antigamente.

*João Marques dos Santos, natural de Garanhuns, onde sempre residiu, é poeta, contista, cronista e compositor.  Teve diversas funções nas atividades culturais da cidade: foi Presidente da Academia de Letras de Garanhuns, durante 18 anos, Diretor de Cultura do Município e, atualmente, é presidente da Academia dos Amigos de Garanhuns - AMIGA. Compôs, letra e música, o Hino de Garanhuns. Mantém, desde 1995, o jornal de cultura O Século. Publicou quatro livros de poesia: Temas de Garanhuns, Partições do Silêncio, Messes do azul e Barro.

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